sexta-feira, 8 de julho de 2016

"DIÁLOGO NÚMERO UM" - ESTEVÃO QUEIROGA - E O MENINO QUE TAMBÉM SOU EU


Esta é a primeira publicação desse blog e já começo com um disco de peso, e por esta razão, difícil de escrever sobre. Como o próprio nome do blog denuncia, todas as nossas publicações se basearão em nossas percepções emocionais; talvez você, técnico, não se sinta muito à vontade com esta humilde estudante de vinte e um anos que não é crítica, mas amante de música, mesmo assim, fique à vontade para sentir junto conosco. 
"Diálogo número um" é o primeiro trabalho do artista Estevão Queiroga, um músico paraibano/manauense conhecido no meio adventista; o álbum é completamente autoral. A produção executiva ficou a cargo de Leonardo Gonçalves com seu selo LG7 do qual também participam Felipe Valente e Gabriel Iglesias, igualmente talentosos. A produção musical ficou por conta do músico Samuel Silva, tecladista, diretor musical e arranjador dos trabalhos do Leonardo Gonçalves de 2004 para cá. Finalizando a parte técnica, a capa e encarte são obras do genial designer e fotógrafo Luquinhaz responsável por vários encartes conhecidos como os recentes "Janela" do Alexandre Magnani (2016), "Graça Ao Vivo" de P.C Baruk(2016), e "Princípio e fim" de Leonardo Gonçaves(2010). 
Desde o primeiro momento em que vi esta capa que é uma foto de um menino chorando com um violão dentro de um rio, percebi de cara que estava diante de uma obra que tinha muito a dizer. O menino que chora em um rio aparentemente calmo é o próprio Estevão diante da jornada de encontrar-se sozinho, e provavelmente ao ouvir o disco percebi que também sou esse menino. É sobre o tema identidade que o álbum constrói sua narrativa, em "Toada de Dedé", canção que abre o disco, vemos uma senhora cantando sem instrumentalização, de forma caseira, relatando a saga de um menino que ao crescer sai de casa, da companhia de seu pai e vai tentar se descobrir no mundo, mas ao encontrar a luz, volta para casa:  "um menino/ um milagre tão divino e incapaz/ um rebento/ dependente de seu pai". O menino não é apenas o músico, o menino somos nós, antes Saulos e posteriormente Paulos, o menino é o mundo inteiro correndo atrás de significado para a própria vida enquanto a queda do cavalo nos faz ver o Mestre. Coisa linda! 
"Toada de Dedé" só possui um minuto e alguns segundos de duração, mas foi uma das canções que mais me fez arrepiar e encher os olhos; pela força da voz que canta, pela raiz nordestina, da qual sou parte e fruto, a identificação com meu povo, minha gente, minha família e eu mesma foi instantânea e me arrancou lágrimas. 
Com elementos de maracatu e acordeon, "Corre atrás do vento" ainda versa sobre a busca pelo significado no mundo pós-moderno com uma harmonia lindíssima da divisão de vozes de Queiroga. Uma das que mais gostei!
O menino, rebento, dependente do pai, que chora e sai de casa, que se vê diante do emblemático momento em que cai do cavalo e, se vê prostrado, cego, diante da Luz profunda  da vida na lindíssima - e se não a mais tocante do disco - "A partida e o norte", música de trabalho. É na provação que a esperança de se encontrar surge, é a luz que cega que faz cair do cavalo e descobrir-se em Deus, é o fogo que queima e purifica os erros que aquece nos dias frios... Uma das letras mais profundas que já ouvi e provavelmente entrará na minha lista de músicas do ano, sem dúvida. 
"O sol e eu" é uma comparação entre a instabilidade e aparente feiúra do homem diante da constância beleza do sol; porém ao fim percebe-se que a fraqueza e instabilidade temporal do homem permitem que o amor e a felicidade sejam sentidos: "...eu não vou ver o sol chorar/e muito menos a sorrir/o sol não pode te amar/o sol não pode ser feliz". Apesar da inconstância humana, o amor ainda é possível. 
"Mais uma porta" é ainda uma ode à instabilidade humana diante do tempo. Nós não sabemos o que acontecerá diante das portas da vida, mas agir com fé é entrar nas portas que Deus abre, porque "Deus só abre as portas/de onde Ele está". Fé é isso! No aspecto musical, é uma das canções que abre o leque de influências de jazz no disco, com acordes de piano bem executados e arranjos de cordas que vão perdurar pelo restante do repertório. Coisa fina!
A faixa 6, "Se for com você (pode ser)" é romântica e trabalha bem as influências de jazz e mpb, parecendo até uma canção de Djavan. Massa! 
"O preço do amor" versa sobre as porções de amor e aceitação que mendigamos quando o Alguém maior já pagou um preço alto por amor, nada mais vale diante dessa prova de aceitação; letra forte, porém, ao meu ver não entra no páreo com as demais que a seguem. Musicalmente ainda se percebe a veia jazzística e de muito bom gosto com um baixo acústico de encher os ouvidos. 
"Quem sou eu" é uma das músicas MAIS FORTES DESSE DISCO. Não dá para ouvir essa música e não sentir vários tapas na cara; ainda dentro da perspectiva da busca pelo significado, essa música revela que o menino da capa ao buscar-se em si mesmo, não se encontra. Ao deparar-se consigo mesmo no espelho, o menino percebe que, na verdade, o que encontra em si é a podridão do oculto, a hipocrisia da bondade aparente. E quem ele é? O rapaz das boas obras vistas por todos ou o que no escuro revela seus desejos mais perversos? 
Musicalmente essa canção é um prato cheio para quem curte um blues com direito a arranjos fantásticos de órgão do Samuel Silva e solos de guitarra de fazer desenhar notas no ar e fechar os olhos. A interpretação de Estevão é impressionante, carregando a angústia da dúvida sobre quem é e rasgando a garganta em agudos dignos de fazer a gente balançar a cabeça e dizer: "oh yes". 
"Bom e Mau" não poderia estar em lugar melhor já que é complementação temática da canção anterior. Aqui o símbolo do menino é mais uma vez construído colocando em lugares opostos duas teorias sociológicas: o homem bom que a sociedade corrompe e o homem ruim que a sociedade controla, quem é o Menino entre esses dois mundos? Pela teologia cristã o pecado é algo que se nasce, logo é mais do que a ação em si e sim a própria condição humana. "Mas em quem eu me tornei?" é a pergunta que liga todos os estágios humanos descritos na figura metafórica do menino: a ingenuidade da infância, a descoberta do erro, a maturidade do homem feito no pecado e, finalmente, após a regeneração efetuada pela obra de Cristo, o homem Bom. "Mas em quem eu me tornei?" essa pergunta após a obra de Cristo questiona quem somos agora: se há algo bom em nós, por certo não vem de nós; existe alguém realmente Bom que nos faz bons. Definitivamente essa canção é um verdadeiro show das doutrinas da Graça. 
Após a regeneração, o Menino agora encontrado, verseja sobre qual é a sua função no mundo com a canção "É isso". A música é basicamente uma tentativa de explicação do Amor de Deus e faz desse Amor a causa da existência, tentando expressá-lo por meio de analogias, e construindo uma macro compreensão de que não há analogias que consigam explicar o Amor de Deus, "é isso". 
"O que será" coloca a voz do próprio Cristo na narrativa e mostra uma espécie de oração do Filho para com o Pai em favor - em amor - de nós. 
A última música, que é a faixa bônus "Nós", ancora o barco do Menino assustado que sai de casa e encontra uma casa com um banquete de amigos e talvez essa construção do repertório revele que o fim da consumação da cruz não apenas possibilitou uma nova identidade a todos os Meninos que saíram de casa, como também fez essa identidade morar no coletivo, morar no "nós". 
O Menino sai de casa, se perde, tenta se achar, descobre que não consegue sozinho, volta para o Lar e encontra-se em Cristo, morando ao final no Nós, como a oração sacerdotal de Jesus pelos discípulos.
O Menino não é apenas Estevão, mas também é a figura metafórica que abarca a existência humana, garotos pródigos fugidos do Lar em busca de significado; garotos que não irão parar de chorar em seus barcos enquanto não voltarem a Ele e descobrirem que só se pode ser porque Ele é. 


NOTA: 4/5




Um comentário:

  1. Impressionante a análise. E o disco, é fora de série. Bom e Mau é minha preferida :D

    ResponderExcluir