Esta é a
primeira publicação desse blog e já começo com um disco de peso, e por esta
razão, difícil de escrever sobre. Como o próprio nome do blog denuncia, todas
as nossas publicações se basearão em nossas percepções emocionais; talvez você,
técnico, não se sinta muito à vontade com esta humilde estudante de vinte e um
anos que não é crítica, mas amante de música, mesmo assim, fique à vontade para
sentir junto conosco.
"Diálogo
número um" é o primeiro trabalho do artista Estevão Queiroga, um músico
paraibano/manauense conhecido no meio adventista; o álbum é completamente
autoral. A produção executiva ficou a cargo de Leonardo Gonçalves com seu selo
LG7 do qual também participam Felipe Valente e Gabriel Iglesias, igualmente
talentosos. A produção musical ficou por conta do músico Samuel Silva,
tecladista, diretor musical e arranjador dos trabalhos do Leonardo Gonçalves de
2004 para cá. Finalizando a parte técnica, a capa e encarte são obras do genial
designer e fotógrafo Luquinhaz responsável por vários encartes conhecidos como
os recentes "Janela" do Alexandre Magnani (2016), "Graça Ao
Vivo" de P.C Baruk(2016), e "Princípio e fim" de Leonardo
Gonçaves(2010).
Desde o
primeiro momento em que vi esta capa que é uma foto de um menino chorando com
um violão dentro de um rio, percebi de cara que estava diante de uma obra que
tinha muito a dizer. O menino que chora em um rio aparentemente calmo é o
próprio Estevão diante da jornada de encontrar-se sozinho, e provavelmente ao
ouvir o disco percebi que também sou esse menino. É sobre o tema identidade que
o álbum constrói sua narrativa, em "Toada de Dedé", canção que abre o
disco, vemos uma senhora cantando sem instrumentalização, de forma caseira,
relatando a saga de um menino que ao crescer sai de casa, da companhia de seu
pai e vai tentar se descobrir no mundo, mas ao encontrar a luz, volta para
casa: "um menino/ um milagre tão divino e incapaz/ um rebento/
dependente de seu pai". O menino não é apenas o músico, o menino somos
nós, antes Saulos e posteriormente Paulos, o menino é o mundo inteiro correndo atrás de significado
para a própria vida enquanto a queda do cavalo nos faz ver o Mestre. Coisa
linda!
"Toada
de Dedé" só possui um minuto e alguns segundos de duração, mas foi uma das
canções que mais me fez arrepiar e encher os olhos; pela força da voz que
canta, pela raiz nordestina, da qual sou parte e fruto, a identificação com meu
povo, minha gente, minha família e eu mesma foi instantânea e me arrancou
lágrimas.
Com
elementos de maracatu e acordeon, "Corre atrás do vento" ainda versa
sobre a busca pelo significado no mundo pós-moderno com uma harmonia lindíssima
da divisão de vozes de Queiroga. Uma das que mais gostei!
O menino,
rebento, dependente do pai, que chora e sai de casa, que se vê diante do emblemático momento em que cai do cavalo e, se vê prostrado, cego, diante da Luz profunda da vida na lindíssima - e se não a mais tocante do disco - "A partida e o
norte", música de trabalho. É na provação que a esperança de se encontrar
surge, é a luz que cega que faz cair do cavalo e descobrir-se em Deus, é o fogo
que queima e purifica os erros que aquece nos dias frios... Uma das letras mais
profundas que já ouvi e provavelmente entrará na minha lista de músicas do ano,
sem dúvida.
"O
sol e eu" é uma comparação entre a instabilidade e aparente feiúra do
homem diante da constância beleza do sol; porém ao fim percebe-se que a
fraqueza e instabilidade temporal do homem permitem que o amor e a felicidade
sejam sentidos: "...eu
não vou ver o sol chorar/e muito menos a sorrir/o sol não pode te amar/o sol
não pode ser feliz". Apesar
da inconstância humana, o amor ainda é possível.
"Mais
uma porta" é ainda uma ode à instabilidade humana diante do tempo. Nós não
sabemos o que acontecerá diante das portas da vida, mas agir com fé é entrar
nas portas que Deus abre, porque "Deus só abre as portas/de onde Ele
está". Fé é isso! No aspecto musical, é uma das canções que abre o leque
de influências de jazz no disco, com acordes de piano bem executados e arranjos
de cordas que vão perdurar pelo restante do repertório. Coisa fina!
A faixa
6, "Se for com você (pode ser)" é romântica e trabalha bem as
influências de jazz e mpb, parecendo até uma canção de Djavan. Massa!
"O
preço do amor" versa sobre as porções de amor e aceitação que mendigamos
quando o Alguém maior já pagou um preço alto por amor, nada mais vale diante
dessa prova de aceitação; letra forte, porém, ao meu ver não entra no páreo com
as demais que a seguem. Musicalmente ainda se percebe a veia jazzística e de
muito bom gosto com um baixo acústico de encher os ouvidos.
"Quem
sou eu" é uma das músicas MAIS FORTES DESSE DISCO. Não dá para ouvir essa
música e não sentir vários tapas na cara; ainda dentro da perspectiva da busca
pelo significado, essa música revela que o menino da capa ao buscar-se em si
mesmo, não se encontra. Ao deparar-se consigo mesmo no espelho, o menino
percebe que, na verdade, o que encontra em si é a podridão do oculto, a
hipocrisia da bondade aparente. E quem ele é? O rapaz das boas obras vistas por
todos ou o que no escuro revela seus desejos mais perversos?
Musicalmente
essa canção é um prato cheio para quem curte um blues com direito a arranjos
fantásticos de órgão do Samuel Silva e solos de guitarra de fazer desenhar
notas no ar e fechar os olhos. A interpretação de Estevão é impressionante,
carregando a angústia da dúvida sobre quem é e rasgando a garganta em agudos
dignos de fazer a gente balançar a cabeça e dizer: "oh yes".
"Bom
e Mau" não poderia estar em lugar melhor já que é complementação temática
da canção anterior. Aqui o símbolo do menino é mais uma vez construído
colocando em lugares opostos duas teorias sociológicas: o homem bom que a
sociedade corrompe e o homem ruim que a sociedade controla, quem é o Menino
entre esses dois mundos? Pela teologia cristã o pecado é algo que se nasce,
logo é mais do que a ação em si e sim a própria condição humana. "Mas em
quem eu me tornei?" é a pergunta que liga todos os estágios humanos
descritos na figura metafórica do menino: a ingenuidade da infância, a
descoberta do erro, a maturidade do homem feito no pecado e, finalmente, após a
regeneração efetuada pela obra de Cristo, o homem Bom. "Mas em quem eu me
tornei?" essa pergunta após a obra de Cristo questiona quem somos agora:
se há algo bom em nós, por certo não vem de nós; existe alguém realmente Bom
que nos faz bons. Definitivamente essa canção é um verdadeiro show das
doutrinas da Graça.
Após a
regeneração, o Menino agora encontrado, verseja sobre qual é a sua função no
mundo com a canção "É isso". A música é basicamente uma tentativa de
explicação do Amor de Deus e faz desse Amor a causa da existência, tentando
expressá-lo por meio de analogias, e construindo uma macro compreensão de que
não há analogias que consigam explicar o Amor de Deus, "é
isso".
"O
que será" coloca a voz do próprio Cristo na narrativa e mostra uma espécie
de oração do Filho para com o Pai em favor - em amor - de nós.
A última
música, que é a faixa bônus "Nós", ancora o barco do Menino assustado
que sai de casa e encontra uma casa com um banquete de amigos e talvez essa
construção do repertório revele que o fim da consumação da cruz não apenas
possibilitou uma nova identidade a todos os Meninos que saíram de casa, como
também fez essa identidade morar no coletivo, morar no "nós".
O Menino
sai de casa, se perde, tenta se achar, descobre que não consegue sozinho, volta
para o Lar e encontra-se em Cristo, morando ao final no Nós, como a oração
sacerdotal de Jesus pelos discípulos.
O Menino
não é apenas Estevão, mas também é a figura metafórica que abarca a existência
humana, garotos pródigos fugidos do Lar em busca de significado; garotos que
não irão parar de chorar em seus barcos enquanto não voltarem a Ele e
descobrirem que só se pode ser porque Ele é.
NOTA: 4/5
Impressionante a análise. E o disco, é fora de série. Bom e Mau é minha preferida :D
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