terça-feira, 19 de julho de 2016

CARRIE AND LOWELL - SUFJAN STEVENS: QUANDO A DOR TORNA-SE BELA



Não sei se você que me lê agora já ouviu alguma coisa deste rapaz que agora irei escrever, mas se já ouviu, com certeza irá concordar comigo em um quesito: Sufjan sabe nos fazer chorar com o coração.
"Ok, mas o que seria chorar com o coração?"
Não é aquele choro melodramático de quando ouvimos alguma música na trilha de um filme romântico no qual um dos protagonistas morre no fim. Não. As lágrimas costumam brotar lá dentro, numa espécie de frutificação interna e, geralmente após essa sensação difícil de explicar, fecha-se os olhos e cada nota, cada miserável nota, é sentida como uma pontada no coração. Foi justamente essa sensação que me fez uma fã incondicional do trabalho do americano de 41 anos com seu enorme acervo de álbuns que vão do folk minimalista a grandes explosões de jazz e até mesmo música eletrônica. 
Carrie & Lowell é o trabalho mais recente do músico, lançado no ano passado e voltando ao som "pequeno" de voz, violão, vocais e piano (em algumas músicas, a presença de sintetizadores e guitarras elétricas também são notadas). Eu coloco, facilmente, este álbum no meu top 3 dos melhores trabalhos de Sufjan (apesar de só ter ouvido quatro álbuns e um EP); primeiro porque o que mais impressiona em toda a lírica do repertório é a dor sendo exposta e, literalmente, exposta, já que conta histórias (como todo bom folk) da problemática mãe do artista e do quanto a relação dos dois era permeada de mágoa, dor e revolta. Sufjan em uma entrevista ao Pitchfork revela que o álbum serviu como uma forma de exprimir todas a confusão de saudade, mágoa e reconstrução do tempo, numa tentativa de perdão para com sua mãe, que acabou morrendo (e este foi o ponto culminante para a criação deste álbum: como a morte de uma mulher que, por seus sérios problemas mentais e com o alcoolismo, não teve contato com seu filho, influenciou sua vida, apesar de toda a distância e mágoa). 
 O segundo motivo de amar com todas as forças este disco é justamente o fato de algo tão pessoal e doloroso tornar-se história universal. Temas que nos são próximos estão todos ali: morte, conflitos familiares, mágoas, dúvidas, inconstância existencial... Não há como não se identificar com as (tristes) histórias contadas por Sufjan.  
Se fosse para resumir a trajetória lírica do álbum, eu arriscaria dizer que todas as canções, de alguma forma, ancoram na difícil temática de lidar com a morte e suas consequências. A morte nos acorda pra vida, mas também encerra situações que pensávamos ser eternas e reparáveis... Nos acorda para o fato de que não temos tanto tempo quanto pensamos; nos grita ao ouvido o fato irremediável de que não temos certeza plena da maioria das coisas que pensamos ter da mesma forma que temos certeza do nosso fim. É doloroso demais, é indispensável demais... E Sufjan nos toca a ferida ao nos lembrar disso.
O álbum já começa com uma punhalada chamada "Death with dignity", uma das minhas preferidas, e, talvez a minha preferida do repertório. A morte já escancara sua face nessa música ao som do bandolim triste de Stevens e da voz suave cantando essas sentenças: "Spirit of my silence I can hear you/But I’m afraid to be near you/And I don't know where to begin/And I don't know where to begin" (Espírito do meu silêncio eu posso te ouvir/Mas estou com medo de estar perto de ti/ E eu não sei por onde começar/ E eu não sei por onde começar). E depois de adicionar a figura de uma espécie de pássaro chamada andorinhão-migrante - pássaro este que ouve a pergunta da boca do eu-lírico: "qual é aquela canção que você canta para os mortos?" - o ponto central do álbum é revelado: o perdão é despejado à sua mãe, mas não há como nada se regenerar. A morte pôs um fim à dor e também à possível reconciliação. Uma pancada!
A segunda canção intitulada de "Should have known better" (Eu deveria ter te conhecido melhor) é a cruciante constatação após a morte de Carrie: não há nada a fazer a não ser lamentar o fato de não tê-la conhecido melhor. 
Aqui os vocais "angélicos" típicos de Sufjan são adicionados juntamente aos belos acordes de violão. Há uma quebra de arranjo com a presença de efeitos de teclado e os vocais dobrados de Sufjan.
"All of me wants all of you" (tudo de mim quer tudo de você) quebra a temática familiar do disco e traz uma espécie de descrição de uma desilusão amorosa com a presença de sintetizadores e guitarras elétricas junto ao constante violão. 
Em "Drawn to the blood" (Atraído pelo sangue) há a primeira confissão: Stevens reconhece, finalmente, o que lhe assola e pergunta o porquê de tudo lhe acontecer.
"Eugene" é uma canção curta, mas carregada de muita saudade e dor e acredito ser uma das mais belas do disco. Aqui há relatos de momentos da infância com o padrasto de Sufjan, Lowell, durante os cinco verões em que passou com ele e sua mãe (assim quando ela retornou depois de anos de abandono), porém acredito que o que torna esta curta canção em verdade grandiosa é a dolorosa pergunta final: "Qual o sentido de cantar canções/Se eles nunca sequer te ouvirão?". Definitivamente não há mais o que acrescentar.
"Fourth of July" é a constatação do que mais tememos sendo escancarada:"we're all gonna die" (todos nós iremos morrer). Nos primeiros versos há um filho conversando com a mãe moribunda, confortando-a: "Você recebeu amor suficiente, minha pombinha?/Por que você chora?/E eu sinto muito por ter partido, mas foi por bem"; logo após a própria mãe reconforta o filho com as mesmas palavras que lhe foram proferidas: "Meu pequeno falcão, por que você chora?/Me diga, o que você aprendeu com as queimadas de Tillamook/Ou com o dia 4 de julho?/Todos nós vamos morrer". Mais uma vez a morte convidando-nos à uma reflexão de que a certeza de sua vinda é uma das pouquíssimas constâncias da vida. 
"The only thing" - (A única razão) - é uma das minhas preferidas e em termos de arranjos apresenta a mesma dinâmica de vozes dobradas, bandolim e violão. A letra versa sobre a dilaceração que a morte dos seus pais lhe causou e como continuar a vida após esta constatação. 
"Carrie & Lowell" canção que recebe o nome do disco, utiliza-se de figuras mitológicas para relatar as saudades do passado. A criação mítica é a fuga para brechas do que não existiram. 
"John my beloved" - (João meu amado) - nos presenteia com vocais sussurrados e arranjos de piano rhodes enquanto faz uma comparação entre a relação de Jesus com o seu discípulo amado (e como a morte de Jesus afetou a João) com o eu lírico diante da constatação da morte. Há uma oração angustiante implícita nesta narrativa: como me separar de quem amo, Jesus? 
A alma de Sufjan é tão exposta, tão dolorosamente exposta, que conseguimos sentir sua dor nesta oração, conseguimos entender sua confusão ao perder uma pessoa que lhe causou tanta dor, que em vida mais lhe parecia um fantasma e ao mesmo tempo é alguém a quem sabe, e não sabe por quais razões, que ama. 
"No shade in the shadow of the cross" - (Não há conforto na sombra da cruz) - é um desalento, é um desespero... Onde encontrar conforto para a dor em um lugar de morte (cruz)? Aqui há a presença de falsetes nos vocais sussurrados. Uma música desesperadamente linda (e carregada de revolta).
Por fim chegamos na última página do álbum de família de Stevens que, por carregar tantos temas que também são nossos, termina por ser nosso álbum de família. A canção "Blue bucket of gold" - (Balde azul de ouro) - é um convite para fábulas serem contadas, para novas histórias serem ditas; a realidade nos esgota demais e talvez seja essa a nossa maior e melhor fuga: conte-me fábulas, amigo, se você me ama. 
Fingir nunca é esquecer do que se sente; um fingidor, como diria Pessoa, finge fingir a dor que, de fato, sente. A dor está lá, camuflada, escondida, maquiada... Mas a fábula nos conta histórias para dormir, mesmo com o coração partido. Sufjan nos presenteia, ironicamente, com uma história para dormir que em nada tem de fábula; aqui a realidade é superexposta, a dor é sentida, não há fingimentos. Simultaneamente a beleza escorre de todo o sangramento que as feridas do passado e do presente causam; a beleza surrada, a beleza triste, a beleza de flores que nascem em asfaltos completamente inversos a sensibilidade floral e eis aí o mistério do disco de Stevens: a beleza nasce do contraste entre o real e o fabuloso, a feíura e o belo,a dor e o bálsamo. 
Depois de apreciar toda essa (dolorosa) beleza uma pergunta faz-se necessária: quem disse que é impossível ouvir histórias tristemente reais para dormir pra vida? Sufjan mais uma vez nos prova o contrário.



Ouça você mesmo:


Nota: 5/5

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