Não sei se você que me lê agora já ouviu alguma coisa deste rapaz que agora irei escrever, mas se já ouviu, com certeza irá concordar comigo em um quesito: Sufjan sabe nos fazer chorar com o coração.
"Ok,
mas o que seria chorar com o coração?"
Não é
aquele choro melodramático de quando ouvimos alguma música na trilha de um
filme romântico no qual um dos protagonistas morre no fim. Não. As lágrimas
costumam brotar lá dentro, numa espécie de frutificação interna e, geralmente
após essa sensação difícil de explicar, fecha-se os olhos e cada nota, cada
miserável nota, é sentida como uma pontada no coração. Foi justamente essa
sensação que me fez uma fã incondicional do trabalho do americano de 41 anos
com seu enorme acervo de álbuns que vão do folk minimalista a grandes explosões
de jazz e até mesmo música eletrônica.
Carrie
& Lowell é o
trabalho mais recente do músico, lançado no ano passado e voltando ao som
"pequeno" de voz, violão, vocais e piano (em algumas músicas, a
presença de sintetizadores e guitarras elétricas também são notadas). Eu
coloco, facilmente, este álbum no meu top 3 dos melhores trabalhos de Sufjan
(apesar de só ter ouvido quatro álbuns e um EP); primeiro porque o que mais
impressiona em toda a lírica do repertório é a dor sendo exposta e,
literalmente, exposta, já que conta histórias (como todo bom folk) da
problemática mãe do artista e do quanto a relação dos dois era permeada de
mágoa, dor e revolta. Sufjan em uma entrevista ao Pitchfork revela que o álbum
serviu como uma forma de exprimir todas a confusão de saudade, mágoa e
reconstrução do tempo, numa tentativa de perdão para com sua mãe, que acabou
morrendo (e este foi o ponto culminante para a criação deste álbum: como a
morte de uma mulher que, por seus sérios problemas mentais e com o alcoolismo,
não teve contato com seu filho, influenciou sua vida, apesar de toda a
distância e mágoa).
O
segundo motivo de amar com todas as forças este disco é justamente o fato de
algo tão pessoal e doloroso tornar-se história universal. Temas que nos são
próximos estão todos ali: morte, conflitos familiares, mágoas, dúvidas,
inconstância existencial... Não há como não se identificar com as (tristes)
histórias contadas por Sufjan.
Se fosse
para resumir a trajetória lírica do álbum, eu arriscaria dizer que todas as
canções, de alguma forma, ancoram na difícil temática de lidar com a morte e
suas consequências. A morte nos acorda pra vida, mas também encerra situações
que pensávamos ser eternas e reparáveis... Nos acorda para o fato de que não
temos tanto tempo quanto pensamos; nos grita ao ouvido o fato irremediável de
que não temos certeza plena da maioria das coisas que pensamos ter da mesma
forma que temos certeza do nosso fim. É doloroso demais, é indispensável
demais... E Sufjan nos toca a ferida ao nos lembrar disso.
O álbum
já começa com uma punhalada chamada "Death
with dignity", uma das
minhas preferidas, e, talvez a minha preferida do repertório. A morte já
escancara sua face nessa música ao som do bandolim triste de Stevens e da voz
suave cantando essas sentenças: "Spirit of my silence I can hear you/But
I’m afraid to be near you/And I don't know where to begin/And I don't know
where to begin" (Espírito do meu silêncio eu posso te ouvir/Mas
estou com medo de estar perto de ti/ E eu não sei por onde começar/ E eu não
sei por onde começar). E
depois de adicionar a figura de uma espécie de pássaro chamada
andorinhão-migrante - pássaro este que ouve a pergunta da boca do eu-lírico: "qual é aquela canção que você
canta para os mortos?" - o
ponto central do álbum é revelado: o perdão é despejado à sua mãe, mas não há
como nada se regenerar. A morte pôs um fim à dor e também à possível
reconciliação. Uma pancada!
A segunda
canção intitulada de "Should
have known better" (Eu
deveria ter te conhecido melhor) é a cruciante constatação após a morte de
Carrie: não há nada a fazer a não ser lamentar o fato de não tê-la conhecido
melhor.
Aqui os
vocais "angélicos" típicos de Sufjan são adicionados juntamente aos
belos acordes de violão. Há uma quebra de arranjo com a presença de efeitos de
teclado e os vocais dobrados de Sufjan.
"All
of me wants all of you" (tudo de mim quer tudo de você) quebra a
temática familiar do disco e traz uma espécie de descrição de uma desilusão
amorosa com a presença de sintetizadores e guitarras elétricas junto ao
constante violão.
Em "Drawn
to the blood" (Atraído
pelo sangue) há a primeira confissão: Stevens reconhece, finalmente, o que lhe assola e pergunta o porquê de tudo lhe acontecer.
"Eugene" é uma canção curta, mas
carregada de muita saudade e dor e acredito ser uma das mais belas do disco.
Aqui há relatos de momentos da infância com o padrasto de Sufjan, Lowell,
durante os cinco verões em que passou com ele e sua mãe (assim quando ela
retornou depois de anos de abandono), porém acredito que o que torna esta curta
canção em verdade grandiosa é a dolorosa pergunta final: "Qual o sentido de cantar
canções/Se eles nunca sequer te ouvirão?". Definitivamente não há mais o que
acrescentar.
"Fourth
of July" é a
constatação do que mais tememos sendo escancarada:"we're all gonna
die" (todos nós iremos morrer). Nos
primeiros versos há um filho conversando com a mãe moribunda, confortando-a: "Você recebeu amor suficiente,
minha pombinha?/Por que você chora?/E eu sinto muito por ter partido, mas foi
por bem"; logo após a
própria mãe reconforta o filho com as mesmas palavras que lhe foram
proferidas: "Meu pequeno
falcão, por que você chora?/Me diga, o que você aprendeu com as queimadas de
Tillamook/Ou com o dia 4 de julho?/Todos nós vamos morrer". Mais uma vez a morte
convidando-nos à uma reflexão de que a certeza de sua vinda é uma das
pouquíssimas constâncias da vida.
"The
only thing" - (A única razão) - é uma das minhas
preferidas e em termos de arranjos apresenta a mesma dinâmica de vozes
dobradas, bandolim e violão. A letra versa sobre a dilaceração que a morte dos
seus pais lhe causou e como continuar a vida após esta constatação.
"Carrie
& Lowell" canção
que recebe o nome do disco, utiliza-se de figuras mitológicas para relatar as
saudades do passado. A criação mítica é a fuga para brechas do que não
existiram.
"John
my beloved" - (João meu amado) - nos
presenteia com vocais sussurrados e arranjos de piano rhodes enquanto faz uma
comparação entre a relação de Jesus com o seu discípulo amado (e como a morte
de Jesus afetou a João) com o eu lírico diante da constatação da morte. Há uma
oração angustiante implícita nesta narrativa: como me separar de quem amo,
Jesus?
A alma de
Sufjan é tão exposta, tão dolorosamente exposta, que conseguimos sentir sua dor
nesta oração, conseguimos entender sua confusão ao perder uma pessoa que lhe
causou tanta dor, que em vida mais lhe parecia um fantasma e ao mesmo tempo é
alguém a quem sabe, e não sabe por quais razões, que ama.
"No
shade in the shadow of the cross" - (Não há conforto na sombra da cruz) - é um desalento, é um
desespero... Onde encontrar conforto para a dor em um lugar de morte (cruz)?
Aqui há a presença de falsetes nos vocais sussurrados. Uma música desesperadamente
linda (e carregada de revolta).
Por fim
chegamos na última página do álbum de família de Stevens que, por carregar
tantos temas que também são nossos, termina por ser nosso álbum de família. A
canção "Blue bucket of
gold" - (Balde azul de ouro) - é
um convite para fábulas serem contadas, para novas histórias serem ditas; a
realidade nos esgota demais e talvez seja essa a nossa maior e melhor fuga:
conte-me fábulas, amigo, se você me ama.
Fingir
nunca é esquecer do que se sente; um fingidor, como diria Pessoa, finge fingir
a dor que, de fato, sente. A dor está lá, camuflada, escondida, maquiada... Mas
a fábula nos conta histórias para dormir, mesmo com o coração partido. Sufjan
nos presenteia, ironicamente, com uma história para dormir que em nada tem de
fábula; aqui a realidade é superexposta, a dor é sentida, não há fingimentos.
Simultaneamente a beleza escorre de todo o sangramento que as feridas do
passado e do presente causam; a beleza surrada, a beleza triste, a beleza de
flores que nascem em asfaltos completamente inversos a sensibilidade floral e
eis aí o mistério do disco de Stevens: a beleza nasce do contraste entre o real
e o fabuloso, a feíura e o belo,a dor e o bálsamo.
Depois de
apreciar toda essa (dolorosa) beleza uma pergunta faz-se necessária: quem disse
que é impossível ouvir histórias tristemente reais para dormir pra vida? Sufjan
mais uma vez nos prova o contrário.
Ouça você mesmo:
Nota: 5/5
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