quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Imagem reprodução do clipe Jeremias de Gabriel Iglesias. 

O ano de 2016 foi pesado para todos nós não tem como negar.  Vários acontecimentos que vão desde catástrofes até nossa instabilidade econômica e crise política. Considero que em muitos momentos, viver esse ano mais pareceu com respirar fundo diversas vezes. Não é de se negar o papel de bálsamo que a música tem nesses momentos dramáticos de nossas vidas ou de nossas dores coletivas e 2016, nesse sentido, não nos decepcionou.
A lista a seguir contém desde álbuns de artistas comerciais até aos mais independentes, no segmento nacional e internacional e que, de alguma forma tornaram-se minha trilha sonora em diversos momentos; assim também como álbuns que escutei recentemente (seja porque foram lançados quase no fim do ano ou porque eu só tive oportunidade de ouvir agora) e que, com certeza, merecem estar aqui.

Obs.: Os discos não estão em ordem de preferência, mas acredito que os meus destaques foram 22 a million (Bon Iver); Diálogo número um (Estevão Queiroga); Pedra em Carne (Gabriel Iglesias); The Eternal Son (Rivers and Robots) e Not to Disappear (Daughter).




1. Out of exile – Strahan
Diferente do primeiro disco, Strahan traz em Out of exile texturas mais próximas ao indie-rock, pop e ao alt-country, construindo tematicamente um caminho que sugere o que é viver no exílio, na linguagem bíblica e o quanto a caminhada aqui nos molda à consciência de que há um país que pertencemos de verdade.
Destaque: Need You.




2. Melhor do que parece – O Terno
O terceiro disco da carreira do jovem trio paulistano, O terno, figura como uma das obras mais deliciosas de se escutar do ano. Sem medo de ser pop, mas sem perder a mão, o trio constrói um álbum repleto de influências que vão do rock anos 60 (som, que muitas vezes lhes é característico) até o ska e indie rock.
Destaque: Melhor do que parece







3. Tuyo – Tuyo
O trio formado por Jean Machado e as irmãs Lilian e Layane, ex-integrantes da extinta (e saudosa) banda Simonami, mostram um outro lado estético no projeto de estreia. Contando com algumas regravações e outras canções autorais, Tuyo, em uma sonoridade folk Lo-FI, apresenta elementos que remetem a um som orgânico com letras que, assim como Simonami, exploram o universo das dores humanas de uma forma bonita.
Destaque: Solamento





4. Daughter – Not to Disappear
A banda britânica de indie pop e indie folk, em seu segundo álbum na carreira, consegue ser mais feliz ainda que o lindíssimo If You Leave, na minha opinião (e seus diversos EP’s). Not To Disappear traz em si uma densidade que com arranjos belíssimos de riffs flutuantes cria um universo de sonho, de fuga, tendo a voz de Elena Tonre como um espetáculo à parte.
Destaque: How


  
5. Diálogo Número Um – Estevão Queiroga
Em seu álbum de estreia, Estevão Queiroga, primeiro artista lançado do selo LG7 pertencente a Leonardo Gonçalves, constrói um repertório permeado de brasilidade que vai da MPB até o soul contribuindo para uma sonoridade original com letras que tecem um verdadeiro diálogo entre a personalidade de quem canta e quem ouve, fazendo com que, ao final, todos se descubram no mesmo barco: a busca por si e por Deus.
Destaque: A Partida e o Norte


6. Mahmundi – Mahmundi
Mahmundi é projeto da compositora e multi-instrumentista Marcela Vale juntamente com Felipe Velozo e Lucas de Piava que, em um estilo próprio, flerta com o ló-fi, indie, música eletrônica e o experimental. Depois de dois ep’s que lhe renderam elogios e nome carimbado em diversos festivais alternativos do país, Mahmundi, primeiro disco, chega com autorais e regravações dentro de um universo meticulosamente arranjado e produzido, com timbres e sinths que dão mais corpo à voz da carioca.
Destaques: Sentimento; Leve



7. The Brilliance – See the love
Tendo David Gungor, irmão do músico Michael Gungor, como vocalista principal, o duo de indie worship, como é nominado lá fora, traz nesse EP de quatro músicas, uma mensagem de denúncia contra todo ódio propagado em nome do amor, inclusive (e principalmente) no meio religioso cristão. Se aproximando de uma sonoridade que compreende o som do indie-pop e influências dos anos 70, assim como hip-hop, See the Love é um verdadeiro manifesto em nome da paz e do amor.
Destaque: See the Love.





8. Keaton Henson - Kindly Now
Apesar de, particularmente, eu ter esperado mais do álbum, Kindly Now, consegue ser um belíssimo trabalho que vai desde a concepção da capa, que é uma verdadeira obra de arte (o que já deve se esperar do Keaton que também é artista plástico, para variar) até o caminho que se propõe nas suas letras e melodias tristes que, como é do perfil do artista, refletem sua vida pessoal. 
Destaque: No Witnesses


  
9. Anavitória – Anavitória
Anavitória é uma junção de dois nomes que pode muito bem ser um só. E nessa lógica, as duas garotas do Tocantins, formaram um duo, e, descobertas por Tiago Iorc e após um grande sucesso na internet, lançam seu primeiro álbum. Anavitória, por carregar o nome do duo se responsabiliza por apresentar a identidade musical das moças em um delicioso repertório que conta com o pop, as raízes nortistas e o folk. Delicioso de se ouvir e cantarolar durante o dia.
Destaque: Agora eu quero ir.




10. Bon Iver - 22, A million
A arte tem o poder de incomodar, e se não incomoda, traz bálsamo, mas o que se pode concluir é que não tem como sair inerte a um conteúdo verdadeiramente artístico. O novo disco da banda indie Bon Iver, encabeçada por Justin Vernon, com certeza incomodou bastante com uma sonoridade por vezes obscura e difícil de entender, diferente dos trabalhos anteriores que brincavam com o folk e o indie.
22, a million, o terceiro disco de carreira da banda que, dessa vez, flerta com a música eletrônica,  incomoda por ser fragmentado, uma porção de colagens, uma porção de misturas que resultam numa quase confusão quando de repente situa quem ouve em um alívio. Definitivamente você não sairá inerte e talvez só venha a entender (ou não entender) tudo quando ouvir pela 5º vez consecutiva.
Destaque: 8 (circle)





11. Crombie – Como diz o outro
A banda carioca encabeçada por Paulo Nazareth, desde o registro ao vivo em Niterói não lançava e surpreendeu a todos com os novos ares de Como diz o outro.
Tematicamente, o caminho registrado no álbum busca entender, diante de tantas vozes falando tantas coisas em um mundo pós-moderno, onde e quando perdemos a nossa capacidade de ouvir o outro.
A sonoridade da banda também traz novos ares com um pop brasileiro com influências do indie rock e do rock alternativo de bandas brasileiras como Los Hermanos.
Destaque: Da rotina




12. Gabriel Iglesias – Pedra em Carne
Um dos discos mais aguardados por mim este ano, apesar de conter algumas músicas que eu talvez descartaria para uma melhor coesão temática (mas quem sou eu não é mesmo? Haha), não me decepcionou e mostrou a que veio. Gabriel Iglesias é um dos artistas do selo LG7 e foge extremamente da linguagem e mercado gospel tanto por suas letras quanto pela estética. Pedra em Carne, como já escrevi aqui, tem como mensagem o caminho percorrido que conta como a Lei se tornou em carne e nos possibilitou uma nova aliança com Deus e ao mesmo tempo nos põe Jeremias como figura que nos representa em nossas angústias existências diante do peso da Palavra e a responsabilidade para com o resto do mundo.
Musicalmente é um disco ló-fi, orgânico, com flertes com o indie-folk e o experimental.
Destaques: Jeremias; Jerusalém.

13. Supercombo - Rogério
Com uma acidez que já é característica nas letras da banda, Rogério é um álbum conceitual que critica a intensa busca por culpar o outro, em uma geração viciada na própria imagem e na própria segurança em destilar ódio a todos atrás de uma tela. Com participações de grandes e diversos nomes de vários segmentos da música brasileira, o terceiro disco da banda é um dos melhores até aqui.
Destaque: Monstros.




14. Rivers & Robots – The Eternal Son
Há pouco tempo conheci essa banda e, juntamente com The Oh Hellos, tem sido minha companhia mais frequente no spotify. Escutei todos os álbuns e fora o Take Everything, este aqui, pra mim, figura como o melhor da banda até agora. 
The Eternal Son é um disco que traz letras que abordam a figura de Cristo e sua majestade, como é característica das letras da banda britânica e, por esta razão, recebem, como gênero musical a nomenclatura de indie worship. A grande diferença da Rivers and Robots para as demais bandas de worship é que o som dos caras é realmente indie-rock britânico, com camadas de vocais que dão suporte aos arranjos de guitarras. Com certeza é uma das descobertas preferidas do ano, pra mim.

Destaque: One Day With You.





15. Alexandre Magnani - Janela

Eu nunca tinha parado para ouvir nada do Magnani, até este disco e fiquei positivamente impressionada com Janela por dois motivos: o primeiro consiste na musicalidade fresca do Alexandre, que é guitarrista, e apresenta na obra referências ótimas de um classic rock e blues, assemelhando muito com o som do John Mayer. O segundo motivo é o conceito do álbum, que pelo título denuncia novas perspectivas para a práxis cristã. Olhar pela janela significa descobrir novas possibilidades e desconstruir muitos conceitos para assim crescer e, quem sabe, poder enxergar Deus para fora das quatro paredes de nossos templos simbólicos.


Destaque: Mi mi mi em sol maior; Um dia de cada vez.

Gostou da lista? O que mudaria?

E você? Qual a sua lista?

Diz pra mim aqui nos comentários <3

quinta-feira, 10 de novembro de 2016


Sigur Rós é uma banda de post-rock e experimental da Islândia muito conhecida por suas melodias, clipes e álbuns profundos e epifânicos. Mais do que quem produz, quem ouve é quem expressa melhor a essência da banda e está aí o grande paradoxo: poucas pessoas conhecem o islandês (íslenka) e mesmo assim há uma unanimidade semântica quanto ao que se entende ouvindo os rapazes das terras de gelo: é só sentimento. 
Concerto ao vivo

Documentário Heima (2008) de apresentações ao ar livre nas paisagens da Islândia.

Estamos diante de algo poderoso porque não há coordenadas codificadas de significados como a língua se propõe a ser e isso revela muito sobre quem somos e o que há de mais profundo e bonito no mundo. Somos humanos e a linguagem nos define enquanto humanos; este poderoso poder simbólico que nos cerca e que nos dá autonomia criativa e deleite contemplativo quanto à toda criação. Sigur Rós nos mostra que o significado na Arte transcende o código, é o próprio ato de dizer, é a própria forma de se cantar, é o próprio canto, a própria existência agindo e respirando. Ouví-los sempre soa como mergulhar em um mar de sonhos, de respiros profundos no ar gelado e com sol tímido das terras nórdicas. Puro deleite!

Assista você a esse clipe belíssimo de "Glósoli", uma das minhas músicas preferidas de todo o repertório dos rapazes nórdicos: 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016


Questões e conceitos acerca do que seria a Arte e, consequentemente, obra de Arte, são debatidas desde que nos entendemos por gente, e como produção essencialmente humana, a definição para o conceito termina sempre por beirar o aberto, o incompreensível.
Mas há de se destacar que uma das grandes características que difere o objeto da obra de arte é o que aquela provoca no que aprecia. Um objeto é usado para o cotidiano e, como diria o crítico literário Octávio Paz, a Arte transcende o objeto e, de forma violenta, faz com que aquela produção nos insira além da praticidade do dia-a-dia. Por muitos anos, calcados sob uma perspectiva artística greco-romana, o entendimento de obra de arte se resumia no Belo e Bom, o sublime. Apenas o sublime em suas categorizações de valor é que definiria uma obra artística, mas este tipo de pensamento, com o passar do tempo veio a enfrentar a aparição do grotesco, a utilização de temas considerados negativos na produção artística.
O que se entende hoje por Arte antes compreende que o conceito depende da mentalidade histórica de um povo e que, por esta razão é um livro aberto, mas ainda conserva a definição primitiva de que o objeto só transforma-se em Arte quando provoca algo em quem aprecia, seja no aspecto belo ou grotesco, sublime ou reflexivo. Arte instiga.

E dentro da inquietante constatação do que nos provoca uma verdadeira Obra de Arte se encontra o álbum de estreia “Pedra em Carne” do músico Gabriel Iglesias, integrante do selo LG7 (assim como Estevão Queiroga e Felipe Valente) no casting da Sony Music Gospel. Iglesias, como artista, apesar de transparecer sua confissão cristã em toda a sua obra, assim como no próprio conceito do álbum “Pedra em Carne”, muito se afasta do que seria a linguagem do Gospel (que mais do que um mercado, é um movimento dentro do cristianismo evangélico brasileiro). O que Iglesias traz em sua obra, instiga, provoca e choca um público acostumado com fórmulas prontas em músicas que compreendem chavões religiosos e modelos instrumentais pré-concebidos, e por esta razão, acredito que, definitivamente, o jovem músico não se encaixe na linguagem e nem na “estética” do Gospel brasileiro. Isso é perceptível com a grande discussão em cima do videoclipe conceitual (belíssimo) da música “Jeremias”, dirigido por Matheus Siqueira com locações de se encher os olhos na Catalunha.



Trazendo um repertório construído a partir de uma linha narrativa baseada em Jeremias 31:33, o disco, antes do conceito, revela a alma musical de Iglesias, tendo todos os instrumentos executados por ele mesmo, assim como os arranjos e letras das músicas (em algumas letras, contando com a participação do irmão Lucas Iglesias, teólogo e também músico) e influências do eletrofolk, post-rock e indie-folk. A alma musical de Iglesias se escancara a partir da vulnerabilidade exposta na própria forma de se gravar e produzir, quase de forma caseira, experimental, orgânica, tal qual “For Emma, forever ago” (2008) de Bon Iver. O caminho da vulnerabilidade á plasticidade dos grandes estúdios se deu conscientemente por ser um suporte adequado à poderosa tônica narrativa, divida em três partes: a Lei, a Pedra, a Carne; três compartimentos que revelam a vontade de Deus e a resposta humana diante da voz de Deus.
A discussão existencial do profeta diante do que era e do que poderia ser,a partir do momento que obedecesse à voz de Deus é a grande mensagem do disco.O que Iglesias propõe, choca, instiga e provoca não apenas na linguagem musical mas por apresentar o ser numa perspectiva agonizante que nos coloca como o próprio Jeremias angustiado por carregar uma mensagem de destruição a um povo que amava e não se reconhecer digno de tal mensagem. Jeremias é a figura simbólica que representa o homem que só é quando obedece, que só existe porque ouve ao Deus que promete a aliança de encarnar a Lei e de nos habilitar para Sua vontade. Mais do que canções, há uma pregação expositiva de todo o plano Eterno para o homem e o quanto isso implicará na sua concepção de si mesmo diante do mundo, contrapondo-se ao existencialismo de Sartre, “o ‘você é’ antecede o ‘eu sou’”, encarnar a Lei, crendo por fé no Deus que se fez Carne para que isso fosse possível, é admitir que existir de verdade é, antes de tudo, uma constante tensão.

NOTA: 4,5/5

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Menestrel (2014) - foto divulgação.

Recentemente escrevi sobre a estranha e fantástica sensação de pertencimento a um povo, a um pedaço de chão e o quanto que isso nos constrói e nos modela como pessoas (aqui!). Ainda dentro dessa perspectiva regionalista, trago aqui uma obra que é uma daquelas coisas que a gente fecha os olhos pra assimilar toda a profundidade e beleza em cada detalhe, temeroso de perder a grandiosidade do que se está desfrutando.
Numa genial junção entre o erudito e o popular - conceitos controversos no campo da história da arte - Roberto Diamanso, traz o seu excelente segundo trabalho: "Menestrel" (2014) com onze músicas que vão de arranjos elaboradíssimos de piano e rabeca à baiões autênticos e traços da cantoria popular do Nordeste brasileiro, podendo facilmente entrar em termos de qualidade aos grandes nomes da música brasileira.
Como estudante de Letras, tenho o grande privilégio de estudar sobre Cultura e Literatura popular nordestinas, o que me possibilita tentar conhecer profundamente o que já é corriqueiro por aqui em poesia, música e formas de expressões, principalmente nos sertões dos estados. O disco de Diamanso é um grande painel de tudo o que é vivo e bonito na nossa cultura, mas ainda traz mais novidades: as boas-novas do evangelho. 

Com o título de "Menestrel", fazendo referência ao poeta europeu medieval, tal como o trovador, que em música contava grandes narrativas, Roberto Diamanso, alagoano, pastor, poeta e músico, se oferece, nesta obra, como o cAntador de histórias em plena praça pública; tendo como fio a fé no Deus que inspira toda poesia. 
Somos convidados a entrar nesse grande universo de cantoria com a belíssima Coelet, que para mim já configura como a mais bonita do disco por seu teor poético de fazer menção ao capítulo 12 do livro de Eclesiastes enquanto mostra a fugacidade da vida, e o quanto ela é pequena se os olhos não estão fixados no Criador. 
A segunda canção, Razão do Universo, traz os dedilhados de viola que muito lembram as canções de grandes nomes de cantadores como Elomar e Xangai, além da marcação belíssima da rabeca intercalando com arranjos de piano e o triângulo trazendo reminiscências do baião. Lindíssima em todos os sentidos, a letra desta canção põe como centro a figura de Cristo como o Rei de todos. 

Faina, a terceira do disco, apresenta o homem comum que acorda com o galo, trabalha com o sol e come do fruto de seu suor com o sorriso de seus filhos, tendo como sonoridade o forró de rabeca, acordeon, zabumba e triângulo. 
Menestrel, canção que traz o título do álbum, é a carta de manifesto, apresentando em um baião o propósito de toda a temática lírica: professar a fé em Cristo.

Trova nova, fazendo ponte entre as canções dos trovadores europeus e os cantadores regionais, traz uma embolada, modalidade da cantoria nordestina que apresenta o pandeiro e a voz como únicos instrumentos. A história contada na embolada narra a saga do homem comum na vida tendo como objetivo o Louvar a Deus (como Roberto comumente apresenta seu estilo musical). 
Patativa, sexta canção, traz a viola de cantoria com a temática do drama da patativa diante do descaso com a natureza. 
Pote de coaxar é a sétima faixa, mas que, ao contrário das anteriores, tem como foco a declamação de um poema com solos belíssimos de baixo acústico e piano clássico.

Com a temática do quanto somos tecidos para um relacionamento com quem nos tece, Um tecelão e um tear, nos presenteia com um baião estilizado, próprio e autêntico.
Logo após temos a canção Aquele que te guarda que, com o objetivo de ser o acalento para alma, traz versos que abordam o descanso em Deus, confiando que Ele cuidará de nós. 
Já ao fim do disco, as duas últimas canções apresentam-se como gêmeas esteticamente, carregando a mesma introdução e os mesmos arranjos de rabeca, violinos, baixo acústico, piano clássico e violões, mas diferenciando tematicamente. Ao que parece, Sonho bom, tematicamente nos mostra o propósito de toda a criação, o relacionamento com Deus, as pessoas e a natureza antes da entrada do pecado. O sonho bom que um dia foi realidade.


Eu vivo sonhando, última canção do disco é uma grande conversa com a morte, a grande consequência do pecado, que assolou o relacionamento humano com Deus, com seus semelhantes e com a natureza, tendo como pano de fundo a esperança de que, apesar desta criação estar caída, ainda virá o dia em que tudo voltará a ser como era antes, tal qual um sonho bom. 

Ao terminar de ouvir tudo o que Diamanso tem a nos dizer, encravado com os pés em seu chão de homem nordestino, imerso em uma cultura onde a poesia está no cotidiano e os versos são escadas para sonhos diante da mediocridade da vida, podemos, enfim, acordar do estado de total estupefação
perante a absurda obra que não está na língua de todos, mas inspira e encanta os ouvidos de quem para pra ouvir o menestrel cantar.

Nota: 5/5

Ouça você mesmo:

terça-feira, 27 de setembro de 2016




Existem álbuns que te tocam por muitas nuances; belos arranjos, belas melodias, letras bem construídas e existem álbuns que te desconstroem, te fazem e refazem, te reinventam. 
Coloco o álbum Pronto pro mundo (2015) do Daniel Caldeira na segunda categoria, definitivamente. A cada letra, cada arranjo, embarcamos em uma viagem reflexiva, dolorosa sobre quem somos, sobre quem achamos ser e o quanto isso pesa na nossa relação com o outro. 
Já na primeira faixa, Pronto pro mundo, que carrega o título da obra do carioca, somos convidados a contemplar a nós mesmos dentro de um mundo onde cada pessoa é um universo... Qual universo criamos para afirmarmos nossa identidade? 
"a vontade de ser/é o ser da vontade" os versos cantados após uma explosão instrumental que mais parece um grito de alguém que chora, anuncia para quê o álbum veio: questionar o ser em relação ao mundo. Na minha opinião a mais dramática, intensa e bonita de todo o disco.
Moldura é a segunda faixa e abre o leque das inspirações do indie-rock gringo de bandas como a francesa Phoenix assim também como a presença de sintetizadores que lembram sons dos anos 80. Traz uma letra que sugere, ao meu ver, a diferença entre o que se sente e o que se aparenta.
Kassel, mais um indie-rock com guitarras que beiram ao flutuante e efeitos sintetizadores traz uma letra com o quê existencial da lírica do artista durante a trajetória musical do disco.

Meu coração é um dragão, quarta faixa do disco, para mim configura como uma das mais bonitas do disco - uma das três mais incríveis, no mínimo - é uma balada com guitarras elétricas fazendo a base que um violão faria (tal como o Keaton Henson faz em suas canções) e trazendo uma letra poderosa: quem que tem força diante da poesia? quem que se salva? 
É interessante salientar a riqueza lírica da escrita do Daniel Caldeira, com letras que beiram ao abstrato surrealista de tão subjetivas e além-realidade que são. 
Além, traz um rock com toques de pop, dissertando sobre o tédio da existência na terra que é chata demais, sem novos horizontes, principalmente para alguém que não se arrisca. Talvez o medo de viver, seja o medo de amar, conclui a canção (ou seria um começo?)
Todo mundo e nós  para mim é a que mais traz influências da Phoenix em seu pop/rock, que pode sugerir uma audição leve, mas que carrega a temática que pode englobar o disco todo: quem pensamos que somos quando nos achamos prontos?


"No fim do dia/todo mundo mora/no olho do furacão". Tudo o que criamos a fim de nos escrevermos como prontos, acabados e perfeitos, desmorona no fim de um dia e isso nos iguala a todos, inclusive aos que nos afastamos. "No fim do dia/todo mundo mora/e acha que pode explicar/escrever o que diz/numa tábua qualquer". Que pancada! Não ser dono da verdade é admitir que não é dono de si, e talvez a constatação dessa verdade seja a dolorosa tônica de toda a obra. 
"A história do meu carro (que na verdade é uma metáfora dos meus relacionamentos) é uma divertida canção que trabalha a história de uma carro como metáfora para abordar o medo diante dos relacionamentos.
"Não sei" , a última canção, ocupa, na minha opinião, como a segunda mais bonita do disco e é uma música grandiosa, em lírica e em instrumento. Divide-se em duas partes: a primeira fala sobre a sede por algo além daqui. A letra versa, ao meu ver, sobre a busca transcendental por algo (que pode ser Deus) a partir dos ritos, e como o rito indica a noção de "saber por onde estar indo", levando ao fracasso. Quando a busca pelo transcendental toca o chão e encarna na vida, na incerteza e quando nos jogamos na experiência com este algo além de nós, talvez, de fato, o encontremos. A segunda parte da canção é o que se pode deduzir da própria experiência dessa busca, coberta de incertezas sobre quem se é e sobre as expectativas da vida em relação ao que deveríamos ser. Um escancaramento sincero de alguém que admite não ter todas as respostas. 
Talvez a grande tônica do disco seja exatamente a de esmiuçar nossa hipocrisia diante da existência. Criamos significado para acobertamos nossa falta de respostas. Admitir que não temos é aceitar que não estamos prontos (e assim descobrimos que o título da obra ou é ironia ou é paradoxo), que talvez nossos castelos de certezas sejam feitos de papel e quando isso acontece o que nos resta é entender que nossa vontade de ser a despeito da realidade da vida e do universo que é cada um, mora na definição do que somos, de fato.

Ouça você mesmo: 


p.s.: Coloquei o álbum Pronto pro mundo como um dos doze que você PRECISA ouvir, mesmo que não seja tão conhecido, clique aqui para conferir! 

NOTA: 4,5/5

quarta-feira, 21 de setembro de 2016


É absurdamente estranho parar para pensar em conceito de nação, ou mais especificamente, patriotismo. Como é que podemos sentir orgulho ou nos sentir parte de algo apenas por pisar em um chão? Como denominamos de nosso o samba, o forró, a feijoada e o futebol (dentre tantas outras coisas) apenas porque foram produzidas em um determinado espaço dividido por linhas imaginárias. É absurdamente estranho notar que essa identificação espacial (e cultural) nos forma como indivíduos no mundo. 
Adentrando na nação é ainda mais louco, principalmente num país como o Brasil que mais parece abrigar vários países, como criamos nossa identidade a partir do nosso chão por causa dos nossas regiões geográficas, estados e cidades. O que faz de uma pessoa, baiana? Que tipo de ser humano é formado a partir da identificação do gaúcho ou do carioca com sua cidade/estado? É dentro desse arcabouço de lugar e identidade que se situa minha impressão da obra "O quinze" de Rachel de Queiroz. 
Venho entrando em um estado de identificação com a terra de que sou fruto de forma tão profunda, que ao ler a obra da cearense - nos anos 10-30, anos duros para o nordestino - não consegui não me emocionar com cada situação descrita, com cada drama vivido, como se eles, de alguma forma também fossem eu. 



O sertanejo nordestino representado pelo Chico Bento, pela Cordulina, pela professora Conceição e pelo vaqueiro Vicente é uma figura tão próxima de quem nasce no Nordeste que é quase impossível não sentir a dor do retirante do século XX como se fosse a nossa; uma mágoa que nos constrói, que nos modela como humanos, estranhamente, apenas porque pisamos o mesmo chão e compartilhamos do mesmo sotaque, da mesma cultura... Tais elementos tornam-se substitutos do sangue familiar que une. 
Mas antes de pincelar a identidade construída pela narrativa, nada mais justo do que mergulhar na própria narrativa da cearense Rachel de Queiroz, que na época só contava os 20 anos de idade. Rachel faz parte da segunda fase do Modernismo brasileiro, conhecida como "geração de 30" tendo Graciliano Ramos e Jorge Amado como também representantes no viés da prosa; "O Quinze" pode ser enquadrado como romance modernista regionalista por carregar traços de identificação com uma região do país.  
O modernismo, além de pregar uma grande ruptura com as tradições passadas, defendendo os versos livres e a liberdade criativa, também nasceu d'uma vontade de reconhecer a brasilidade do país e o que nos tornava essencialmente brasileiros na nossa maneira de produzir arte; evidentemente o romance regionalista entra dentro dessa vontade de se reconhecer brasileiro apesar da diversidade de vários "brasis" dentro de um Brasil. Rachel emerge dessa vontade de construção de identidade nacional a partir da diversidade de culturas no país e também, acredito, que até majoritariamente, com o intuito de denunciar o descaso com a região nordestina, politica e historicamente explorada e subjugada, mesmo com toda a contribuição para com a História, Política e Arte nacionais. O que acontece nos romances regionalistas é que a necessidade de se reconhecer como brasileiro parte da consciência de que o ser brasileiro mora no nós, várias culturas, vários povos que merecem ser reconhecidos como brasileiros e respeitados como gente. É um grito de visibilidade para o invisível.



A história descreve a seca dos anos 15 no povoado de Quixadá no Ceará, nos apresentando personagens que carregam traços do contexto social em suas formas de se expressar, agir e pensar. 

O enredo se divide em dois planos; o primeiro se foca no romance - ou quase romance - do vaqueiro Vicente, homem da terra, largo sorriso e bruto, com sua prima Conceição, mulher culta, citadina e professora. O abismo intelectual e geográfico que os separa pode servir como representação da dicotomia tão difundida na Literatura: campo vs cidade; ou ainda mais: tal oposição geográfica constrói a linha em que teço este texto: identidade a partir da terra. Inevitavelmente somos construídos a partir da nossa terra, nossos costumes e nossa cultura. Outro ponto importante ainda sobre a personagem Conceição é sua relação com sua avó: tradicionalista, presa a pensamentos do patriarcado; tal relação revela a oposição entre o velho e o novo, a mentalidade vigente e as novas ideias vindas do socialismo e feminismo que eram temas das leituras de Conceição. 
A avó de Conceição não concebe o fato da neta "perder" tanto tempo em livros quando poderia estar muito bem casada. Conceição se coloca em uma posição a frente do seu tempo ao, sutilmente, escolher sua autonomia intelectual, mesmo que ainda enraizada de preconceitos raciais. 
O grande dilema escancarado pela relação dos primos implica em perguntar se o amor, tantas vezes idealizado em muitas histórias, principalmente na Literatura, ainda continua em pé ante os preconceitos e mazelas sociais. O amor vencerá o estigma social? O amor vencerá a dura seca que a todos devora na fazenda Logradouro, nos arredores de Quixadá e em todo o sertão nordestino?
E é a mesma seca, que a todos vê, a todos atinge - ricos ou pobres - que molda o destino do vaqueiro Chico Bento, o outro lado da grandiosa história de Queiroz. 
Chico é que vê sua humanidade se esvaindo, seu direito de ser gente morrendo aos poucos, ao ponto em que a seca lhe leva a terra e o obriga a enfrentar o drama de migrar para o Norte do país junto com a família, em busca de emprego. 
Sua esposa Cordolina e seus cinco filhos são construídos, assim como Chico Bento, como partes intrínsecas ao cenário de fogo, galho seco e barro: frágeis, fortes, tristes e resilientes. A seca não os alterou apenas enquanto corpo, mas esta drástica mudança no corpo  modificou suas formas de se relacionar humanamente. Tanto é que a dor de ver os filhos morrendo, pouco a pouco vai se naturalizando como se a fome a todos transformassem em bichos: não conscientes da perda afetiva. 
Talvez a grande mensagem trazida por este segundo lado do enredo de O Quinze seja o mais poderoso porque traz, de forma mais enfática que a primeira parte da história, a questão do que nos faz ser gente. 
Chico Bento, Cordolina, Vicente, Conceição, Dona Inácia são representações deste grande questionamento e, de forma profunda, denunciam a alienação de direitos humanos básicos vindos de uma má distribuição de renda, assim como o descaso regional para com uma parte do país mostrando que pouco a pouco o ser gente morre por questões de pura desigualdade social. 
O drama de Chico Bento, o diálogo entre gerações representado por Conceição e dona Inácia convergiram para um mesmo ponto: o Nordeste de ontem e o de hoje e o que isso acarretou como identidade construída para cada pessoa nascida aqui. 
A dor do sertanejo, assim como os preconceitos raciais, xenofóbicos e intelectuais são temas que ainda nos acompanham enquanto povo brasileiro. Rachel de Queiroz pôs o dedo na ferida do Brasil, ao mesmo tempo que reverberou a voz sertaneja como um dos grandes ápices de pertencimento de quem vê num espaço delimitado por linhas chamado de região Nordeste, um chão que não só se pisa, mas também se molda e revive. 
Retirantes  - (1944) - Portinari