quarta-feira, 21 de setembro de 2016

"O QUINZE" RACHEL DE QUEIROZ - SOU EU ESSE CHÃO


É absurdamente estranho parar para pensar em conceito de nação, ou mais especificamente, patriotismo. Como é que podemos sentir orgulho ou nos sentir parte de algo apenas por pisar em um chão? Como denominamos de nosso o samba, o forró, a feijoada e o futebol (dentre tantas outras coisas) apenas porque foram produzidas em um determinado espaço dividido por linhas imaginárias. É absurdamente estranho notar que essa identificação espacial (e cultural) nos forma como indivíduos no mundo. 
Adentrando na nação é ainda mais louco, principalmente num país como o Brasil que mais parece abrigar vários países, como criamos nossa identidade a partir do nosso chão por causa dos nossas regiões geográficas, estados e cidades. O que faz de uma pessoa, baiana? Que tipo de ser humano é formado a partir da identificação do gaúcho ou do carioca com sua cidade/estado? É dentro desse arcabouço de lugar e identidade que se situa minha impressão da obra "O quinze" de Rachel de Queiroz. 
Venho entrando em um estado de identificação com a terra de que sou fruto de forma tão profunda, que ao ler a obra da cearense - nos anos 10-30, anos duros para o nordestino - não consegui não me emocionar com cada situação descrita, com cada drama vivido, como se eles, de alguma forma também fossem eu. 



O sertanejo nordestino representado pelo Chico Bento, pela Cordulina, pela professora Conceição e pelo vaqueiro Vicente é uma figura tão próxima de quem nasce no Nordeste que é quase impossível não sentir a dor do retirante do século XX como se fosse a nossa; uma mágoa que nos constrói, que nos modela como humanos, estranhamente, apenas porque pisamos o mesmo chão e compartilhamos do mesmo sotaque, da mesma cultura... Tais elementos tornam-se substitutos do sangue familiar que une. 
Mas antes de pincelar a identidade construída pela narrativa, nada mais justo do que mergulhar na própria narrativa da cearense Rachel de Queiroz, que na época só contava os 20 anos de idade. Rachel faz parte da segunda fase do Modernismo brasileiro, conhecida como "geração de 30" tendo Graciliano Ramos e Jorge Amado como também representantes no viés da prosa; "O Quinze" pode ser enquadrado como romance modernista regionalista por carregar traços de identificação com uma região do país.  
O modernismo, além de pregar uma grande ruptura com as tradições passadas, defendendo os versos livres e a liberdade criativa, também nasceu d'uma vontade de reconhecer a brasilidade do país e o que nos tornava essencialmente brasileiros na nossa maneira de produzir arte; evidentemente o romance regionalista entra dentro dessa vontade de se reconhecer brasileiro apesar da diversidade de vários "brasis" dentro de um Brasil. Rachel emerge dessa vontade de construção de identidade nacional a partir da diversidade de culturas no país e também, acredito, que até majoritariamente, com o intuito de denunciar o descaso com a região nordestina, politica e historicamente explorada e subjugada, mesmo com toda a contribuição para com a História, Política e Arte nacionais. O que acontece nos romances regionalistas é que a necessidade de se reconhecer como brasileiro parte da consciência de que o ser brasileiro mora no nós, várias culturas, vários povos que merecem ser reconhecidos como brasileiros e respeitados como gente. É um grito de visibilidade para o invisível.



A história descreve a seca dos anos 15 no povoado de Quixadá no Ceará, nos apresentando personagens que carregam traços do contexto social em suas formas de se expressar, agir e pensar. 

O enredo se divide em dois planos; o primeiro se foca no romance - ou quase romance - do vaqueiro Vicente, homem da terra, largo sorriso e bruto, com sua prima Conceição, mulher culta, citadina e professora. O abismo intelectual e geográfico que os separa pode servir como representação da dicotomia tão difundida na Literatura: campo vs cidade; ou ainda mais: tal oposição geográfica constrói a linha em que teço este texto: identidade a partir da terra. Inevitavelmente somos construídos a partir da nossa terra, nossos costumes e nossa cultura. Outro ponto importante ainda sobre a personagem Conceição é sua relação com sua avó: tradicionalista, presa a pensamentos do patriarcado; tal relação revela a oposição entre o velho e o novo, a mentalidade vigente e as novas ideias vindas do socialismo e feminismo que eram temas das leituras de Conceição. 
A avó de Conceição não concebe o fato da neta "perder" tanto tempo em livros quando poderia estar muito bem casada. Conceição se coloca em uma posição a frente do seu tempo ao, sutilmente, escolher sua autonomia intelectual, mesmo que ainda enraizada de preconceitos raciais. 
O grande dilema escancarado pela relação dos primos implica em perguntar se o amor, tantas vezes idealizado em muitas histórias, principalmente na Literatura, ainda continua em pé ante os preconceitos e mazelas sociais. O amor vencerá o estigma social? O amor vencerá a dura seca que a todos devora na fazenda Logradouro, nos arredores de Quixadá e em todo o sertão nordestino?
E é a mesma seca, que a todos vê, a todos atinge - ricos ou pobres - que molda o destino do vaqueiro Chico Bento, o outro lado da grandiosa história de Queiroz. 
Chico é que vê sua humanidade se esvaindo, seu direito de ser gente morrendo aos poucos, ao ponto em que a seca lhe leva a terra e o obriga a enfrentar o drama de migrar para o Norte do país junto com a família, em busca de emprego. 
Sua esposa Cordolina e seus cinco filhos são construídos, assim como Chico Bento, como partes intrínsecas ao cenário de fogo, galho seco e barro: frágeis, fortes, tristes e resilientes. A seca não os alterou apenas enquanto corpo, mas esta drástica mudança no corpo  modificou suas formas de se relacionar humanamente. Tanto é que a dor de ver os filhos morrendo, pouco a pouco vai se naturalizando como se a fome a todos transformassem em bichos: não conscientes da perda afetiva. 
Talvez a grande mensagem trazida por este segundo lado do enredo de O Quinze seja o mais poderoso porque traz, de forma mais enfática que a primeira parte da história, a questão do que nos faz ser gente. 
Chico Bento, Cordolina, Vicente, Conceição, Dona Inácia são representações deste grande questionamento e, de forma profunda, denunciam a alienação de direitos humanos básicos vindos de uma má distribuição de renda, assim como o descaso regional para com uma parte do país mostrando que pouco a pouco o ser gente morre por questões de pura desigualdade social. 
O drama de Chico Bento, o diálogo entre gerações representado por Conceição e dona Inácia convergiram para um mesmo ponto: o Nordeste de ontem e o de hoje e o que isso acarretou como identidade construída para cada pessoa nascida aqui. 
A dor do sertanejo, assim como os preconceitos raciais, xenofóbicos e intelectuais são temas que ainda nos acompanham enquanto povo brasileiro. Rachel de Queiroz pôs o dedo na ferida do Brasil, ao mesmo tempo que reverberou a voz sertaneja como um dos grandes ápices de pertencimento de quem vê num espaço delimitado por linhas chamado de região Nordeste, um chão que não só se pisa, mas também se molda e revive. 
Retirantes  - (1944) - Portinari


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