segunda-feira, 17 de outubro de 2016

QUEM É JEREMIAS? - "PEDRA EM CARNE" (2016) - GABRIEL IGLESIAS


Questões e conceitos acerca do que seria a Arte e, consequentemente, obra de Arte, são debatidas desde que nos entendemos por gente, e como produção essencialmente humana, a definição para o conceito termina sempre por beirar o aberto, o incompreensível.
Mas há de se destacar que uma das grandes características que difere o objeto da obra de arte é o que aquela provoca no que aprecia. Um objeto é usado para o cotidiano e, como diria o crítico literário Octávio Paz, a Arte transcende o objeto e, de forma violenta, faz com que aquela produção nos insira além da praticidade do dia-a-dia. Por muitos anos, calcados sob uma perspectiva artística greco-romana, o entendimento de obra de arte se resumia no Belo e Bom, o sublime. Apenas o sublime em suas categorizações de valor é que definiria uma obra artística, mas este tipo de pensamento, com o passar do tempo veio a enfrentar a aparição do grotesco, a utilização de temas considerados negativos na produção artística.
O que se entende hoje por Arte antes compreende que o conceito depende da mentalidade histórica de um povo e que, por esta razão é um livro aberto, mas ainda conserva a definição primitiva de que o objeto só transforma-se em Arte quando provoca algo em quem aprecia, seja no aspecto belo ou grotesco, sublime ou reflexivo. Arte instiga.

E dentro da inquietante constatação do que nos provoca uma verdadeira Obra de Arte se encontra o álbum de estreia “Pedra em Carne” do músico Gabriel Iglesias, integrante do selo LG7 (assim como Estevão Queiroga e Felipe Valente) no casting da Sony Music Gospel. Iglesias, como artista, apesar de transparecer sua confissão cristã em toda a sua obra, assim como no próprio conceito do álbum “Pedra em Carne”, muito se afasta do que seria a linguagem do Gospel (que mais do que um mercado, é um movimento dentro do cristianismo evangélico brasileiro). O que Iglesias traz em sua obra, instiga, provoca e choca um público acostumado com fórmulas prontas em músicas que compreendem chavões religiosos e modelos instrumentais pré-concebidos, e por esta razão, acredito que, definitivamente, o jovem músico não se encaixe na linguagem e nem na “estética” do Gospel brasileiro. Isso é perceptível com a grande discussão em cima do videoclipe conceitual (belíssimo) da música “Jeremias”, dirigido por Matheus Siqueira com locações de se encher os olhos na Catalunha.



Trazendo um repertório construído a partir de uma linha narrativa baseada em Jeremias 31:33, o disco, antes do conceito, revela a alma musical de Iglesias, tendo todos os instrumentos executados por ele mesmo, assim como os arranjos e letras das músicas (em algumas letras, contando com a participação do irmão Lucas Iglesias, teólogo e também músico) e influências do eletrofolk, post-rock e indie-folk. A alma musical de Iglesias se escancara a partir da vulnerabilidade exposta na própria forma de se gravar e produzir, quase de forma caseira, experimental, orgânica, tal qual “For Emma, forever ago” (2008) de Bon Iver. O caminho da vulnerabilidade á plasticidade dos grandes estúdios se deu conscientemente por ser um suporte adequado à poderosa tônica narrativa, divida em três partes: a Lei, a Pedra, a Carne; três compartimentos que revelam a vontade de Deus e a resposta humana diante da voz de Deus.
A discussão existencial do profeta diante do que era e do que poderia ser,a partir do momento que obedecesse à voz de Deus é a grande mensagem do disco.O que Iglesias propõe, choca, instiga e provoca não apenas na linguagem musical mas por apresentar o ser numa perspectiva agonizante que nos coloca como o próprio Jeremias angustiado por carregar uma mensagem de destruição a um povo que amava e não se reconhecer digno de tal mensagem. Jeremias é a figura simbólica que representa o homem que só é quando obedece, que só existe porque ouve ao Deus que promete a aliança de encarnar a Lei e de nos habilitar para Sua vontade. Mais do que canções, há uma pregação expositiva de todo o plano Eterno para o homem e o quanto isso implicará na sua concepção de si mesmo diante do mundo, contrapondo-se ao existencialismo de Sartre, “o ‘você é’ antecede o ‘eu sou’”, encarnar a Lei, crendo por fé no Deus que se fez Carne para que isso fosse possível, é admitir que existir de verdade é, antes de tudo, uma constante tensão.

NOTA: 4,5/5

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