Pessoalmente eu nunca acompanhei muito a cena do hip hop, e há pouco tempo venho ouvindo os artistas lá fora como Kendrick Lamar, Chance The Rapper e Kanye West (assim como o último disco do Jay Z) e acho que estou descobrindo que realmente gosto de rap.
Aqui no Brasil há uma tradição de hip-hop consagrada, mas como sou nova no meio, estou ouvindo a nova geração como Rincon Sapiência, Criolo, Rimas & Melodias, Kivitz e etc. Mesmo assim, digo com toda a certeza que nenhum artista de hip hop me toca tanto e coloca tanto o dedo na minha ferida quanto Rashid.
Ano passado ouvi "A coragem da luz" e fiquei encantada com a base instrumental brincar com jazz, blues e música brasileira, assim também como me ousei ouvir "Laranja mecânica" em loop numa espécie de catarse provocada pela alta crítica da canção (que enxergo ser diretamente pra mim) e que me causou a mesma sensação de quando assisto algum episódio da série Black Mirror.
Sabendo de tudo isso, esse ano, logo em Janeiro, Rashid lança Crise com uma capa que define a temática do álbum: um homem em crise, oscilando entre a autoafirmação e a vulnerabilidade.
Começando o disco com a pesada Música de Guerra, com uma base instrumental de rock, a canção é uma autoafirmação de Rashid no seu ofício de rapper, defendendo que o verdadeiro MC é o que está no meio da rua falando a verdade, ou seja, a música de guerra.
Estereótipo, segunda faixa do disco foi lançada como single e é uma das mais fortes do disco ao abordar uma crítica ácida e cirúrgica contra o racismo, abordando o estereótipo, a violência policial, o genocídio da juventude negra, as políticas de afirmação como cotas de universidade e meritocracia, tudo em apenas uma música. É de arrepiar!
Sem Sorte é a terceira faixa do disco e apresenta uma base incrível de R&B e jazz com sintetizadores e tem na lírica a importância da história do rapper que trabalhou muito para chegar onde chegou. O refrão ainda apresenta metais com vocais parecidos com Gospel com beats muito bem colocados. Uma delícia de ouvir!
Se as três primeiras faixas falam sobre a autoafirmação do rapper, Primeira Diss funciona como Kill Jay z do 4:44:uma autocrítica ácida utilizando-se dos comentários odiosos de redes sociais. É uma desconstrução ácida e pesada em uma visão assustadoramente negativa sobre si mesmo, contrapondo com a autoestima quase monárquica das outras faixas do disco. Primeira Diss é o primeiro índice da crise de Rashid.
Musashi é a quinta faixa e volta a criticar artistas do hip hop que não têm no modo poético o compromisso com a verdade e nem à tradição do rap assim também como a tendência de rimar por rimar sem se preocupar com a realidade. Mais uma vez Musashi é uma canção de autoafirmação em um jogo de palavras incrível.
Química, sexta faixa do disco é uma canção de amor e possui uma base instrumental interessante com um desenho de baixo interessante, apesar disso, não sei se é porque se difere tematicamente do resto do álbum, mas acredito que a que menos gosto da gravação.
Bilhete 2.0 foi lançada anteriormente como single e tem uma das melhores bases instrumentais do disco com um funk-melody incrível com um groove muito bom de ouvir com a participação vocal de Luccas Carlos. Ainda seguindo a temática romântica de Química, eu ainda digo que gostei mais dessa em relação a anterior, mesmo que destoe liricamente do restante do álbum. O instrumental já é metade do motivo pra amar essa faixa.
Mal com o mundo, oitava faixa do disco, quebra com a áurea positiva trazida pelas duas músicas anteriores e traz com beats e sintetizadores obscuros a sensação de impotência diante de toda a situação vivida no nosso país, a corrupção, o golpe midiático, a violência, o discurso de ódio, o racismo e a sensação de que pela nossa etnia sempre estaremos sendo passados para trás trazendo à tona situações atuais como Temer, Trump, a passeata de neonazistas, a prisão de Rafael Braga trazendo uma sensação amarga na boca e uma melancolia em quem escuta. Uma das melhores do disco!
Com a participação da força da natureza, Ellen Oléria, Se tudo der errado amanhã, mais uma vez mostra a vulnerabilidade do eu lírico em contraste com a aparente autoafirmação em uma base instrumental dramática. É uma autoanálise, tal qual Primeira Diss com a voz de Rashid crescendo à medida que o instrumental cresce com uma espécie de desabafo prestes a explodir em choro. Emocionante e reflexivo, o profeta está em crise.
Fechando de forma esperançosa, assim como em A Coragem da Luz, Pés na areia vem como um suspiro depois de uma sessão de terapia causada pelas outras faixas do disco. Aqui o eu lírico está em frente ao oceano, a um milhão de possibilidades de fazer diferente e renascer.
Ao ouvir Crise estamos em uma análise cirúrgica dos mais profundos sentimentos do artista em relação a quem é, às suas reflexões como artista, como negro e como um ser humano afundado em dilemas existenciais.
Como
Kivitz sempre menciona, o rap é profecia no sentido mais bíblico:
apontar o erro e nos levar ao arrependimento e, nesse sentido, Rashid é
profeta. Um profeta em crise, tão humano e acessível quanto quaquer um de nós.
Nota: 9,5
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