Comprei “Memória de minhas putas tristes” do Gabriel Garcia Márquez (11º
edição, editora Record, 2006 e tradução de Eric Nepomuceno) através de um site
de sebos virtuais, e por esta razão, por ser de segunda mão, possui uma citação
de Hamlet feita pelo antigo dono. Essa é uma das magias de se comprar livros de
segunda mão: você se sente conectado com cada pessoa que apreciou a obra, como
em uma fraternidade secreta que compartilha bons segredos. Por que falo isso?
Porque é a partir do relato, da sensação de que se está testemunhando algo
íntimo que nós, os leitores, nos encontramos ao ler este romance do premiado e
saudoso escritor colombiano, considerado por muitos o precursor do realismo
mágico, Gabriel Garcia Marquez. Aqui, nesta obra, que não possui nada do
fantástico de Cem anos de solidão, por
exemplo, acompanhamos a história de um idoso prestes a completar noventa anos
que decide ter uma noite de “amor” com uma menina virgem de 13 anos, tudo
orquestrado pela sombria cafetina Rosa Cabarcas.
O livro é estruturado em 5
capítulos e narrado em primeira pessoa, sendo este narrador o principal personagem,
então claramente o que iremos ler é a versão do ancião e isto significa muita
coisa.
O personagem principal, um
velho escritor de uma coluna semanal, é um homem solitário que passou a vida
toda frequentando bordeis e vivendo histórias de amor com prostitutas, mas sem
se apegar a elas. Ao longo de sua vida vai sendo uma pessoa normal, sem grandes
feitos, sem casamentos, sem algo para dizer de extraordinário. Vive em uma
grande casa herdada dos pais sem móveis e tendo como companhia a empregada que,
por alguns anos fora sua amante.
Toda essa conformidade em não
ter sido alguém que viveu uma extraordinária vida continua até que ele completa
noventa anos e se percebe, finalmente, como um velho prestes a morrer. A
iminência da morte, a fatal crueldade dos anos travestida em cansaço e enfado
de velhice tiram-no do piloto automático de seus dias e por esta razão decide
se dar de presente uma noite com uma “ninfeta”, proposta da cafetina Rosa
Cabarcas depois de perceber que pela velhice, seus limites morais não faziam
mais tanto sentido.
O que vemos no encontro entre o
ancião e a menina é a recriação do conto de fadas da “bela adormecida” já que a
misteriosa menina, descrita por Rosa como pobre que trabalhava numa fábrica
para criar seus irmãos pequenos (e aí percebemos que a prostituição aliciada
por Rosa é uma alternativa de urgência e não de voluntariado) tomara
medicamentos para dormir de tão nervosa para o encontro. Em toda a obra, em
nenhum momento a menina, em todos os encontros que tivera com o ancião, acordara
e por esta idealização de quem seria, de como seria sua vida, de quais eram
seus sonhos e da não consumação, o protagonista vê-se perdidamente apaixonado e
com isto, com um “amor” que finalmente não se resumia à carne, mas ao contrário
estava acima chegando ao ápice espiritual, sua vida até então insignificante
ganhara algum sabor.
Com esta recriação do conto de
fadas, o que se percebe é que há uma áurea de amor espiritual em toda a
idealização do velho para com a menina adormecida, mas em nenhum momento há a
perspectiva da garota, deixando com que certo mistério seja construído ao redor
de sua imagem e isso contribui para uma ausência de desconfiança sobre os
desejos e anseios da criança, fazendo com que a versão do protagonista e as
falas de Rosa Cabarcas sobre o aparente “amor correspondido” da moça sejam de
alguma forma aceitos pelo leitor.
A obra pode ser lida como uma
ode à significância da vida frente a percepção de que o sentido das coisas são
mais transcendentais e vivos do que simplesmente a superfície delas, mas ficou
em mim, particularmente, uma sensação de injustiça.
Como se percebe, assim como em Lolita de Vladimir Nabokov, aqui há uma
relação de pedofilia, mas diferente da obra do russo, percebemos que há, de verdade,
uma romantização da pedofilia, uma tentativa de mostrar que esse caso é realmente
uma história de amor e aí está um dos meus grandes problemas com o livro. É
certo que não devemos julgar uma obra pelos nossos critérios morais, mas aqui
não há um desafio inteligente ao que consideramos certo ou errado, como ocorre
em Lolita (que é um dos meus livros
preferidos da vida), por exemplo. Na
obra de Nabokov nós sabemos que o protagonista está em um incansável jogo de
manipulação para com o leitor e acabamos nos simpatizando com seu “sofrimento”
e isso é genial.
Aqui na obra de Gabo há uma completo silenciamento da garota
em prol de uma história de “amor” com totais intenções de assim parecer. Se em
Nabokov o silêncio da outra parte e a descrição duvidosa do caráter de Lolita
feita por Humberto é um instrumento de manipulação linguística do narrador (que
é um tipo de personagem) para fazer com que nós nos questionemos sobre a raiz
de nossos critérios morais, aqui em Memória
de minhas putas tristes há o que posso chamar de desonestidade intelectual
ao fazer do sofrimento de uma criança um prato cheio para a exaltação,
felicidade e prazer sem limites de um homem a fim de ser vendido como uma
história de amor que dignifica e louva a vida.
Sob os critérios de Oscar
Wilde, a obra é bem escrita e por vezes me vi deliciada nas memórias do ancião,
em sua percepção bonita e reflexiva sobre o tempo, a velhice, a morte e o
sentido da vida, mas ao mesmo tempo não vi uma preocupação artística em fazer
do imoral algo que, pelo menos, desafiasse a mim de forma inteligente e
coerente. De todo o jeito é imprescindível ler Gabo, se deliciar com sua escrita
maravilhosa, mesmo que isso signifique se sentir decepcionada com o conteúdo.
Nota: 6,9
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