quarta-feira, 3 de agosto de 2016


Toda criação artística apresenta uma visão de mundo, isso é evidente.  Há um status quo nas produções quanto à cosmovisão e principalmente quanto à realidade de quem é o ser humano.
Frequentemente em livros, músicas, filmes, novelas e séries o universo é mostrado como um campo de guerra entre o bem e o mal; o conceito de bem é demonstrado por tipos ou estereótipos: o pai de família, o religioso, o oprimido, enquanto o mal é representado por outros tipos: o bandido, o amoral, o opressor. É fácil se identificar com os bonzinhos dos enredos porque ali há o ideal do que queremos ser, ou do que achamos que somos. A maioria de nós é oprimida, é gente de “família”, é religiosa e por sermos assim, queremos um mundo que faça jus às nossas boas ações, um mundo onde o nosso vilão - que é geralmente o nosso oposto – seja punido e aniquilado.
O que é geralmente esquecido é que essa visão maniqueísta é mais farsa do que realidade; é uma ação muito mais digerível sentir-se no direito de separar o joio do trigo porque assim não nos envolvemos emocionalmente com nenhum de nossos “inimigos”; apatia facilita aniquilação. É quase impossível entrar na mentalidade maniqueísta o fato de que possivelmente o bandido que me assaltou hoje mais cedo tem um histórico de abandono, vulnerabilidade social e miséria. Não. Pensar nessa possibilidade me aproximaria desse rapaz e eu, despida do título de vilão não ousaria me aproximar emocionalmente desse rapaz. Tampouco seria possível essa “aproximação” dentro do campo maniqueísta se minhas atitudes condenáveis de pequenas corrupções diárias partissem do mesmo pressuposto que faz o assassino dizimar vidas inocentes. Inadmissível.
Espantoso para quem pensa assim é notar que, talvez, essa visão complexa e inadmissível seja mais próxima da realidade do que a concepção descrita no status quo das produções artísticas. Somos tão vilões quanto as caricaturas desenhadas em filmes de Marvel, mas pensamos não ser justamente porque não nos adequamos às características que fazem um vilão estereotipado.
E é justamente nesse emaranhado humano de emoções, corrupções e crueldade que o universo artístico de Mr Robot mergulha. A história à princípio pode parecer simples: um jovem rapaz chamado Elliot Alderson, com dificuldade em se envolver socialmente, é programador de uma empresa de segurança cibernética durante o dia e à noite hackeia a vida de todas as pessoas que, de alguma forma, tem contato; promovendo com isso pequenas ações de proteção para com as pessoas que se importa e denunciando crimes de cafés que frequenta e até do quase namorado de sua terapeuta. Elliot posteriormente conhece um grupo de hackers chamado Fsociety que tem como objetivo entrar no sistema da maior empresa chamada E-Corp a fim de promover uma revolução econômica levando o sistema mundial a uma distribuição de renda mais justa.
Enredo simples para se ler, mas o enfoque da trama vai mais além: mais do que as conspirações do estado e a denúncia contra o sistema capitalista, o que mais me impressiona nessa produção é construção dos personagens. Elliot não cabe apenas no antissocial curioso e revoltado com o sistema: Elliot é o rapaz que se esconde na mascara do não envolvimento profundo com as pessoas para fugir de sua personalidade perturbada e de seus traumas de infância, assim também como a morte de seu pai cometida indiretamente pelas escolhas criminosas de condições de trabalho dos empregados da E-Corp. Elliot, na sua busca por justiça, também promove ações que facilmente seriam dadas a um vilão. Angela, sua amiga, não é apenas a moça legal que tem a mãe também morta pelo contato com a radiação no trabalho da E-Corp; também é a que dissemina vírus na empresa que trabalha para não prejudicar a si mesma e é a que, em muitos momentos, contradiz a causa pela qual tanto luta. Do outro lado está Tyrel, o executivo da Evil Corp que tem todas as características de vilão, mas que apresenta sintomas de insegurança consigo mesmo, solidão e carência por visibilidade. Notou aonde quero chegar? Todos os personagens nos fazem perceber que eles não estão distantes de nossa realidade e que a linha que divide vilões e mocinhos parece não ser tão larga.
Não apenas no universo das artes, mas também na política e em algumas visões religiosas, há uma tendência em dividir o mundo entre os bonzinhos e os malvados. Vamos entrar no exemplo das ideologias políticas conhecidas como esquerda e direita. Na direita, ou em grande parte de suas diretrizes, acredita-se que se o homem estiver livre das garras do Estado, será, de fato livre economicamente, logo, livre para aproveitar boas condições da vida. Acredita-se também, no conservadorismo político, que conservando a tradição, e apegando-se quase religiosamente a ela, haverá a possibilidade de se livrar das inovações que possam trazer malefícios a ordem de paz; o homem é capaz de tudo isso por sua liberdade, segundo essa visão. Estamos diante de uma meia verdade, que não é todo mentira, mas com certeza não entra no campo da verdade. O que passa despercebido é que por mais livre economicamente que o homem possa ser, seu coração sempre estará tendencioso a burlar o sistema, a corromper-se com a quantidade de dinheiro que adquiriu com seu “próprio” esforço e a explorar o que não conseguiu subir nas escadas da meritocracia. Grande parte da esquerda, por outro lado, acredita que o homem é passivo diante do sistema corrupto e opressor: ele não escolhe o mal, mas as suas condições sociais o levam a situações extremas diante de sua pobreza, e por essa razão é que muitos dos que se envolvem na criminalidade são parte das minorias: pobres e negros. Também acredita que é possível reduzir todos os malefícios e desigualdades a partir de uma revolução econômica e do fim da propriedade privada em um mundo onde todos viverão harmonicamente sem tomar o que é necessário da vida do outro. Utopia e, mais uma vez, meia verdade. Mesmo que houvesse uma revolução onde não houvesse propriedade privada, será mesmo que essa revolução daria conta da fome insaciável de todo ser humano em acumular pra si riquezas? E será que todo criminoso que passou por uma situação de extrema pobreza entrou na vida do crime APENAS por sua situação econômica? (deixo claro aqui que eu concordo com o fato de que o sistema desigual promove a facilidade de pessoas em estado de vulnerabilidade social entrarem mais facilmente na vida criminosa, mas o que quero reforçar é que ninguém é completamente passivo; também há o campo das escolhas que contribuem para a criminalidade).
Nenhum sistema econômico, ao meu ver, dá conta da realidade de quem verdadeiramente somos. Não estamos livres e não somos totalmente passivos diante de um sistema. A bíblia não mostra um homem inteiro como as ideologias tentam pregar, ao contrário, apresenta um homem partido dentro de um mundo também partido. (como na canção "Bom e mau" do Estevão Queiroga no álbum "Diálogo número um" que fiz a resenha aqui ).
O homem, segundo a bíblia, é capaz de coisas grandiosamente belas e boas ao mesmo tempo que tem o mal explodindo dentro de si como um vulcão em constante erupção. O bem que há em nós é fruto da Imago Dei ou Imagem de Deus. É essa substância divina que nos traz a consciência dolorosa de que somos sim iguais ao bandido que muitas pessoas querem morto. É essa substância que nos faz ver Hitler como um ser humano que em muitos momentos da vida promoveu boas ações e apresentava facilidade em se envolver com crianças; é essa substância que faz com que grandes invenções para cura de doenças antes tidas como incuráveis sejam possíveis, que faz com que muitas pessoas carentes sejam assistidas através de ONGs humanitárias... É essa substância que propicia a construção de coisas extremamente belas nos campos da Arte em geral com grandes músicas, grandes filmes, belas escuturas...  
Por outro lado, mesmo possuindo a Imago Dei, a bíblia também nos mostra como vilões sanguinolentos, línguas ferinas, pés apressados para o mal, inimigos de Deus... Vilões. E o mais impressionante: nascemos sob essa condição. O mal não é apenas o que fazemos, o mal é o que somos naturalmente. Somos capazes de criar bombas atômicas e arrasarmos com países inteiros, somos capazes de contribuir para o trabalho escravo, de acumular riquezas e explorar o pobre, de consolidar o racismo e entre tantas outras formas de preconceito e exclusão social.
Como seres completos possuindo duas naturezas opostas, vivemos em um mundo complexo que não é dividido por linhas baseadas em nossos conceitos de bondade e maldade; o mundo não está tão dividido quanto imaginamos.
A bíblia e posteriormente Mr Robot apresentam uma face nossa que reprimimos, que lutamos para não enxergar e nos chamam à consciência dolorosa de quem somos de verdade: maus e bons, vilões e mocinhos, pecado original e Imagem de Deus.