Existem álbuns que te tocam por muitas nuances; belos arranjos, belas melodias, letras bem construídas e existem álbuns que te desconstroem, te fazem e refazem, te reinventam.
Coloco o álbum Pronto pro mundo (2015) do Daniel Caldeira na segunda categoria, definitivamente. A cada letra, cada arranjo, embarcamos em uma viagem reflexiva, dolorosa sobre quem somos, sobre quem achamos ser e o quanto isso pesa na nossa relação com o outro.
Já na primeira faixa, Pronto pro mundo, que carrega o título da obra do carioca, somos convidados a contemplar a nós mesmos dentro de um mundo onde cada pessoa é um universo... Qual universo criamos para afirmarmos nossa identidade?
"a vontade de ser/é o ser da vontade" os versos cantados após uma explosão instrumental que mais parece um grito de alguém que chora, anuncia para quê o álbum veio: questionar o ser em relação ao mundo. Na minha opinião a mais dramática, intensa e bonita de todo o disco.
Moldura é a segunda faixa e abre o leque das inspirações do indie-rock gringo de bandas como a francesa Phoenix assim também como a presença de sintetizadores que lembram sons dos anos 80. Traz uma letra que sugere, ao meu ver, a diferença entre o que se sente e o que se aparenta.
Kassel, mais um indie-rock com guitarras que beiram ao flutuante e efeitos sintetizadores traz uma letra com o quê existencial da lírica do artista durante a trajetória musical do disco.
Meu coração é um dragão, quarta faixa do disco, para mim configura como uma das mais bonitas do disco - uma das três mais incríveis, no mínimo - é uma balada com guitarras elétricas fazendo a base que um violão faria (tal como o Keaton Henson faz em suas canções) e trazendo uma letra poderosa: quem que tem força diante da poesia? quem que se salva?
É interessante salientar a riqueza lírica da escrita do Daniel Caldeira, com letras que beiram ao abstrato surrealista de tão subjetivas e além-realidade que são.
Além, traz um rock com toques de pop, dissertando sobre o tédio da existência na terra que é chata demais, sem novos horizontes, principalmente para alguém que não se arrisca. Talvez o medo de viver, seja o medo de amar, conclui a canção (ou seria um começo?)
Todo mundo e nós para mim é a que mais traz influências da Phoenix em seu pop/rock, que pode sugerir uma audição leve, mas que carrega a temática que pode englobar o disco todo: quem pensamos que somos quando nos achamos prontos?
"No fim do dia/todo mundo mora/no olho do furacão". Tudo o que criamos a fim de nos escrevermos como prontos, acabados e perfeitos, desmorona no fim de um dia e isso nos iguala a todos, inclusive aos que nos afastamos. "No fim do dia/todo mundo mora/e acha que pode explicar/escrever o que diz/numa tábua qualquer". Que pancada! Não ser dono da verdade é admitir que não é dono de si, e talvez a constatação dessa verdade seja a dolorosa tônica de toda a obra.
"A história do meu carro (que na verdade é uma metáfora dos meus relacionamentos) é uma divertida canção que trabalha a história de uma carro como metáfora para abordar o medo diante dos relacionamentos.
"Não sei" , a última canção, ocupa, na minha opinião, como a segunda mais bonita do disco e é uma música grandiosa, em lírica e em instrumento. Divide-se em duas partes: a primeira fala sobre a sede por algo além daqui. A letra versa, ao meu ver, sobre a busca transcendental por algo (que pode ser Deus) a partir dos ritos, e como o rito indica a noção de "saber por onde estar indo", levando ao fracasso. Quando a busca pelo transcendental toca o chão e encarna na vida, na incerteza e quando nos jogamos na experiência com este algo além de nós, talvez, de fato, o encontremos. A segunda parte da canção é o que se pode deduzir da própria experiência dessa busca, coberta de incertezas sobre quem se é e sobre as expectativas da vida em relação ao que deveríamos ser. Um escancaramento sincero de alguém que admite não ter todas as respostas.
Talvez a grande tônica do disco seja exatamente a de esmiuçar nossa hipocrisia diante da existência. Criamos significado para acobertamos nossa falta de respostas. Admitir que não temos é aceitar que não estamos prontos (e assim descobrimos que o título da obra ou é ironia ou é paradoxo), que talvez nossos castelos de certezas sejam feitos de papel e quando isso acontece o que nos resta é entender que nossa vontade de ser a despeito da realidade da vida e do universo que é cada um, mora na definição do que somos, de fato.
Ouça você mesmo:
p.s.: Coloquei o álbum Pronto pro mundo como um dos doze que você PRECISA ouvir, mesmo que não seja tão conhecido, clique aqui para conferir!
NOTA: 4,5/5