A história parece clichê: um escritor frustrado, em crise de meia-idade, casado com uma mulher por 25 anos com a qual tem 4 filhos, de repente se vê envolvido, numa viagem de família ao interior, com uma garçonete, também casada.
Seria realmente uma típica novela das nove se não fosse pela genialidade criativa na forma como a série é escrita, dirigida e no quanto que a narrativa nos oferece mais do que estereótipos: são dores intensamente humanas, são histórias visceralmente humanas.
A série segue a estrutura de contar a história por duas perspectivas de um mesmo acontecimento por episódio e este o grande diferencial: não há repetição de cenas, de acordo com a visão do personagem alguns detalhes mudam, seja na roupa, seja nos gestos, seja na impressão causada, seja no toque... É a memória, com toda a sua fragilidade, fugacidade e traços de nossa visão de mundo, que desenha a linha que nos conduz à história.
É a memória que constrói não apenas uma cena, mas a visão daquele personagem sobre si mesmo e sobre o outro.
Por essa memória descobrimos Noah Solloway, um homem bem casado que ama Helen, sua esposa, e os quatro filhos, mas se vê num limbo existencial quando não atinge suas próprias expectativas como escritor e como pessoa e quando não atinge as expectativas da família de Helen, rica e controladora. Noah é honesto, fiel e entende que casou com o primeiro amor da sua vida, mas há vestígios em si que carregam um desejo incontrolável por algo a mais e é neste momento em que Alison aparece.
Pela memória de Noah, Alison é descrita como uma mulher sedutora, que faz do mistério, seu charme, livre e encantadora, e que não sente nenhum remorso ao buscar trair seu marido... Nas partes em que estão juntos, ela é a provocadora, ele é o bom moço que "resiste' à tentação.
Mas é aí, justamente aí que The Affair alcança outros patamares. A visão de Noah não corresponde exatamente à realidade e ao mesmo tempo é a realidade. Não estamos falando de uma série que apresenta uma verdade objetiva, mas de várias verdades sendo construídas pela memória, pela visão de mundo dos personagens e pelo que parece ser mais conveniente a cada um omitir, esconder, distorcer... Nenhuma perspectiva é real, e ao mesmo tempo todas são.
Ao conhecermos Alison de sua própria perspectiva, entendemos que ela é uma mulher que carrega dentro do peito a dor de ter perdido o filho em um casamento que parece não estar mais se sustentando, já que ambos estão devastados pela culpa, pela saudade e pela sensação de luto. Alison é insegura, não tão confiante e não consegue ver sentido na sua vida em Montauk, em todo modo de viver praiano, no seu emprego, na sua casa, lugar de recordações dolorosas e nos olhos, corpo e tatuagem do marido, Cole, por tudo lembrar seu pequeno filho Gabriel, que morrera num afogamento. A atuação de Ruth Wilson interpretando Alison é uma das melhores coisas já vistas e nos faz sentir, como numa pontada de faca no coração, cada fio de dor que envolve Alison até quando não consegue pronunciar palavras por hesitação.
O affair entre Alison e Noah, refúgio para suas cansadas vidas é um retrato de algo mais profundo que acontece nos dois personagens: ambos anseiam por algo a mais e pouco a pouco vão tomando escolhas para saciar a sede do sentido que, como um furacão, destrói violentamente cada pessoa ao redor de suas vidas e até aquilo que pensavam ser.
Com o passar do tempo percebemos que na felicidade do amor proibido dos protagonistas, máscaras caem: o desejo, a mentira, a traição, a manipulação transformam-se em instrumentos para obter essa felicidade que, na visão dos dois, não pode mais ser sufocada pelos parâmetros construídos até aqui e que tinham causado tanto sofrimento a ambos.
Por esta razão, Helen e seus quatro filhos se veem em uma estrada intensa de sofrimento, de sensação de perda, de mágoa reprimida entre os filhos com os pais, de verdades sobre si mesma refletidas na explosão imoral do marido. Helen vê que não o controla mais e que todas as suas expectativas de felicidade e amor, em um casamento que começou como conto de fadas, não era aquilo que pensava. Pouco a pouco a frustração, a sensação de não ser suficiente, a insegurança vão tomando conta de uma mulher que antes era admirada por sua força e autocontrole. Seus filhos, principalmente os mais velhos, Martin e Whitney vão cada dia mais tomando decisões que refletem suas respectivas mágoas contra Noah em uma violência de silêncios e insensatez como resposta ao casamento desmoronado dos pais.
O rastro de destruição causado pelo affair também revira a vida já bagunçada o suficiente de Cole Lockhart, um homem aparentemente seguro, profundamente introspectivo, que carrega nos olhos a dor da perda de seu filho, mas sublima a saudade com uma aparente vontade de seguir em frente, o que é motivo de mágoa em sua esposa, Alison: a dor não é falada, o desconforto, o luto não são assuntos e sempre parece haver entre os dois um abismo de entendimento, de cumplicidade que desagua em um casamento de desconhecidos solitários após a perda do filho. Cole ama Alison de forma quase espiritual, mas os dois nunca conseguem romper com a barreira que o luto causou em suas vidas. Como resultado, o vemos cada vez mais conformado com a "maldição" de sua família, de seu nome, de sua vida, cada vez mais entregue ao seu próprio silêncio, onde só os olhos conseguem dizer de verdade o que sente.
E mais uma vez, a memória faz o seu papel fundamental na estrutura narrativa, enquanto, mais para frente, precisamente na segunda temporada, vemos a perspectiva de Alison sobre Cole: ela o vê como alguém duro, frio e impessoal (às vezes até assustador), na perspectiva de Cole ele se enxerga cada vez mais afundado na tristeza por ter perdido algo que ele pensava ser para sempre. Alison enxerga-se insegura, enquanto vê Noah um homem confiante, charmoso e capaz de lhe dar aquilo que procura dentro dela; Helen vê os defeitos de Noah, mas o perdoa insistentemente, em um amor que rasteja aos pés; Noah enxerga em Helen uma mulher presunçosa, e talvez por seu peso de consciência, omite todas as suas qualidades para sentir-se bem.
E é nesse ínterim que apesar de facilmente odiado por todos que assistem, Noah se apresenta como o personagem, juntamente com Alison, mais complexo da narrativa: o afã de ser grande, de conquistar tudo, de superar a frustração de 20 anos adequando-se ao que os outros queriam dele, de afastar-se em mágoa do pai e ao mesmo tempo transformar-se no que mais detestava, que Noah nos presenteia gradualmente com sua derrocada; da glória da ilusão de juventude com Alison, da glória do ego amaciado por elogios e pelo amor de uma mulher mais jovem até a plena consciência de toda a dor que causou naqueles que mais amou na vida e do quanto esses caminhos traçados não oferecem opção de volta.
O poder da memória na narrativa é mais do que a lembrança pura e simplesmente; é se utilizando da fragmentação dessa memória que The Affair entrega um dos melhores dramas da atualidade, porque é na fragmentação que, assim como o crítico literário Antônio Cândido diz, nós somos capazes de criar ficções. E se tudo é ficção o que é verdade? E se o romance escrito por Noah baseado em seu caso com Alison é, como incansavelmente é defendido por ele, uma ficção, o que seria a realidade de fato?
Não existe a verdade objetiva nos nossos trajetos aqui na vida; não existem os bons moços e nem os maus, na aparente história clichê de novela, The Affair escancara um drama cru, honesto e humano sobre nossa condição, nosso ego, nossas escolhas como efeito borboleta e nossa busca desenfreada pelo sentido de existir.