Há algumas semanas decidi começar minha tradicional maratona do Oscar e fui no que mais estava me chamando atenção: BlacKKKlansman (ou “Infiltrado na Klan”) estrelado por John David Washington e dirigido por Spike Lee.
A história por si só já vale o play, mesmo que não fosse tecnicamente à altura, o que, definitivamente, não é o caso. O enredo se baseia na história real de Ron Stallworth, um policial negro do Colorado, em plena década de 70 que se infiltra na Ku Klux Klan, comunicando-se por telefonemas e cartas e, quando precisa estar presencialmente, envia um policial branco para as reuniões. Ron Stallworth chega a ser líder local da seita e consegue, por esta razão, sabotar inúmeros atentados racistas.
Nessa história, por si só, curiosa, percebemos o drama a que Ron é submetido, não apenas por infiltrar-se na seita racista mais famosa e violenta da história do seu país, mas quando percebe as tonalidades do racismo. Ron até então só entendia o racismo quando exposto, caricato e explosivo como na organização da KKK, mas dolorosamente, após se envolver com uma militante do Panteras Negras, começa a ver nuances de opressão na instituição que trabalha, no olhar curioso do colega de trabalho, na fala do chefe.
A surpresa ainda é maior quando Flip, o policial branco ( e judeu!!!) percebe, ao entrar na seita, que a abordagem não seguia mais os moldes tão alarmantes e explícitos que esperava. Apesar de no interior serem abertamente racistas, organizarem atos violentos e desejarem tomar o mundo contra a conspiração judaica para acabar com os valores cristãos do branco ocidental, a metodologia da seita não era explícita para os de fora. A nova forma de se apresentarem era como mais tolerantes, como defensores de uma segregação “pacífica”, almejando com isso alcançar os altos lugares da política para defenderem os interesses do “nativo” branco americano.
Sim. Uma segregação pacífica; uma forma de neutralizar a imagem pesada de outrora, desejando o bem dos negros, com a condição de que esses ocupem os seus devidos lugares.
No diálogo que parece ser o mais importante da película, Ron conversa com seu colega de trabalho, e enquanto este explica para ele a nova metodologia da Klan, Ron indaga que aquilo não seria possível. Ninguém com aquela ideologia chegaria ao ponto de ter apreço político ou sequer ser ouvido.
Será?
Ao fim do filme, somos apresentados com comparações entre as falas supremacistas da ku klux klan e as passeatas dos orgulhosamente denominados de neonazistas em 2017 nos Eua. A passeata se apresentava como uma alternativa — como se fosse possível medir as causas — aos protestos da Black Lives Matter; julgaram-se como no direito de protestar pela causa do branco, do ocidental e do cristão.
O drama de Ron foi o de enxergar que as lutas não eram mais contra o estereótipo racista tão facilmente identificável, mas contra a normalização do absurdo travestido de tolerância. Em nome da divisão existencial que o fez enxergar além das divisões muito bem orquestradas pela política segregacionista do racismo norte-americano, Ron conseguiu sentir literalmente na pele que não conseguiria ser o super-herói que salvaria o racismo da polícia americana, mesmo, ao fim, conseguindo contornar as situações na instituição.
O buraco era mais embaixo.
Não era mais sobre as tochas acesas ou cruzes queimadas ou até as assustadoras roupas brancas, mas sobre a piadinha inofensiva de humor “negro”, o olhar julgador de quem não enxerga pretos em lugares de poder, a algema pra o negro que se mexe além do que “deveria” e porque não, a inofensiva e condescendente declaração do presidente dos estados unidos dizendo que “os dois lados estavam violentos” (sobre a tentativa de boicote e atentado de neonazistas em uma passeata antirracista) e que nem todos da passeata neonazista eram pessoas más.
O discurso da tolerância para o intolerável que fazia Ron Stallworth rir de incredulidade é o que mina com todas os fundamentos de humanidade que ainda resta na nossa civilização. É em nome de uma guerra contra inimigos invisíveis da conspiração anti valores cristãos, contra o“politicamente correto” que não deixa ninguém “brincar”; contra o‘extremismo’ que não permite os homens de serem machos, contra o vitimismo que não permite brancos se orgulharem de serem brancos, que os “inimigos” aparentemente novos, na verdade se revelam como as velhas caças para os poderosos caçadores.
Porque, na verdade, o maior objetivo do absurdo não é escancarar o ódio em cruzes ou tochas, mas sim o de nos fazer sentar num banco de praça e apertar suas mãos num gesto de profundo respeito ao simples, pitoresco e tradicional jeito de pensar do homem comum.
A grande questão é que a mão que apertamos ainda está suja de sangue.