sexta-feira, 15 de setembro de 2017

O QUE GAME OF THRONES NOS LEMBRA?

ATENÇÃO: CONTÊM SPOILERS!




Baseado na série de livros "As crônicas de gelo e fogo" de George R.R. Martin, Game of Thrones, adaptação televisiva por David Benioff e D. B. Weiss, tornou-se com o passar dos tempos um dos maiores fenômenos da tv (se não o maior), com números gigantescos de pessoas assistindo, comentando, teorizando e vivendo a série semana após semana. 

Para uma melhor explanação, irei me ater apenas a série, visto que ainda não li os livros (apesar de já ter começado o livro I).


Os personagens dessa incrível história de Martin estão tão dentro do imaginário da cultura pop atual que houve uma explosão de escolhas de nomes como "Daenerys", "Tyrion" e "Arya" para bebês nos EUA segundo o Huffpost, assim como o gigantesco número em audiência da série adaptada pela HBO todos os domingos. 
Mas diante de tão estrondoso sucesso, qual seria o segredo? As crônicas de Gelo e Fogo, e logicamente a sua versão adaptada pela HBO (que se tornou uma obra à parte, inclusive) conta-nos uma história diferente das comumente exibidas. E isto não se deve apenas ao fato de, corajosamente, levar extrema violência e sexo para um horário nobre de TV, por exemplo, mas em algo mais profundo: os personagens da história de Martin são incrivelmente complexos. 



Em um mundo cada vez mais polarizado, em que opiniões são levantadas como granadas contra outros e onde existe uma tentativa de endossar bons contra os maus, Game of Thrones nos presenteia, ironicamente, em um universo fantástico, com doses violentas e cruas de realidade.

Logo no primeiro episódio da série (assim como os primeiros capítulos do livro), nós somos apresentados a um momento inquietante: Ned Stark, Lorde de Winterfell, homem bom, honrado, ótimo pai e esposo, sentencia e mata, por suas próprias mãos, um homem por ter abandonado seus votos, homem este que fugira na floresta por ter visto o que viria a ser a maior ameaça de toda a narrativa.
O que vemos aqui? O protagonista honrado, apesar de certo em justiça, matando um homem bom, aparentemente, por infringir uma pequena regra. A honra antes da vida. A honra que o fez morrer da mesma maneira. Temos os olhos de Bran ao assistir a execução, perguntamo-nos no porquê as pessoas matam, e no porquê um homem tão bom como Ned Stark estava desse lado da história. 
Estamos diante de Game of Thrones, em um universo em que a morte é a primeira inimiga e a última, e em que as pessoas estão andando em círculos, caindo em suas próprias armadilhas, morrendo a partir de suas próprias escolhas. Ninguém fugiria desse dilema de conviver com o peso dos próprios erros e acertos. Nem, tampouco, Ned Stark. 

Se estivéssemos diante de uma novela, passaríamos agora  do núcleo dos mocinhos, que seriam os Stark(sem contar os outros núcleos de mocinhos como o de Daenerys, por exemplo) para o núcleo dos vilões, Lannisters, mas felizmente, não estamos vendo uma novela.

O que falar de personagens como Jaime Lannister, um ardiloso cavaleiro que nos deixou estarrecidos com sua brutalidade ao empurrar Bran da torre e praticamente iniciar parte do conflito dos Lannister contra Starks, que levou, inclusive à morte do personagem-chave de toda a história, Ned Stark?

Jaime, em uma série ou livro qualquer seria apenas um playboy rico, bonito e de péssimo caráter, mas não em Game of Thrones. 
Antes regicida (matou o rei que jurou proteger), arrogante e maquiavélico, com o tempo, passamos a ser confrontados com um Jaime frágil, inseguro e em eterno limbo. Um homem que depois de todas as suas ações, passa a questionar-se do porquê de tudo e tentar reparar algumas questões, apesar de ainda permanecer com os fantasmas do passado e viver atribulado por ser a sombra de sua irmã.

Não tão diferente, e ainda na mesma família, temos Cersei Lannister, sua irmã e amante. Talvez a personagem mais complexa e bem construída de toda a trama, Cersei é a mulher capaz das maiores atrocidades, cujos olhos brilham de prazer ao ver o sangue de inimigos derramado, ou criaturas frágeis que se colocam em seus caminhos serem brutalmente despedaçadas por seus planos ardilosos. Mas Cersei também é a que cresceu sem a mãe, tendo como função de vida ser vendida a um homem que não amava e que mais tarde a estupraria e espancaria; Cersei é a que cresceu assombrada com as profecias que ouvira quando criança, sobre o terror iminente de ter seus filhos mortos e ser assassinada. 
Cersei é a rainha louca que manda explodir um templo religioso cheio de pessoas inocentes apenas por conter alguns inimigos, ao mesmo tempo que é a mulher que prefere envenenar seu filho para uma morte sem dor a vê-lo sofrer, enquanto com olhos cheios de lágrimas, conta-lhe uma história, ao entender que a batalha estava perdida e ele, provavelmente, seria violentamente assassinado pelos inimigos.

E o que dizer de personagens como Cão de Caça, um brutamontes sem coração, com sangue nos olhos e pronto para aniquilar qualquer pessoa sem nenhum remorso, que de repente vê-se enternecido paternalmente ao salvar Sansa Stark do abuso e cuidar, ao seu jeito, de Arya Stark, protegendo-lhe a vida e infância?

Ainda posso citar Theon Greyjoy, o traidor da casa Stark capaz de promover a ruína da família por sua ambição e orgulho, mas que se vê destruído mentalmente e fisicamente por Ramsay, e preso num dilema existencial que o faz se perguntar constantemente sobre quem é e qual o propósito de sua vida, dando-nos raiva quando trai os Stark e nos tirando lágrimas dos olhos, quando mesmo confuso, salva Sansa e, despedaçado pela vida, decide juntar os cacos de si mesmo para uma nova chance.

E por que não falar da própria Sansa Stark, garota superficial e fútil dos primeiros momentos, que praticamente provocou morte do seu pai, Ned Stark por seus caprichos e escolhas baseadas em puro egoísmo? Essa mesma Sansa é a que, a duras penas, aprende a, sem armas, lanças ou violência, sobreviver aos piores inimigos, persuadir o homem que sempre a manipulou e retomar de forma inteligente o Norte. Entre a arrogância e a humildade, o orgulho e o arrependimento, Sansa é titubeante, insegura, misteriosamente carrega resquícios de seu egoísmo, mas deseja mais que tudo sentir-se em casa, entender-se, de uma vez por todas, como alguém que precisa proteger a família e fazer parte dela.



Dentre todos esses exemplos de personagens complexos, o que na literatura chamamos de redondos, fica-se evidenciado o porquê de tanto sucesso. Claro que ter dragões bem construídos, lindas fotografias, um roteiro que nos presenteia com diálogos fantásticos e um espetáculo de produção ajuda muito, mas o triunfo de Game of Thrones reside na capacidade imperiosa de ser um espelho coerente de todas as nossas próprias contradições.


Por mais que queiramos, nós nunca nos adequaremos aos papéis maniqueístas de filmes de super-heróis. Por mais que tentemos, não cabe em nós o uniforme daquele que se sacrifica pelo bem maior e luta bravamente contra o arqui-rival... O rival é o violento residente da nossa alma, nossa personalidade titubeante e angustiada que dança entre pólos extremos, com ações de bondade convivendo com nossos mais odiosos vícios e baixezas. Nem os que mais se parecem com os heróis, na narrativa, como Jon Snow e Daenerys Targaryen fogem de suas próprias contradições. Jon é o rapaz que cresce sob o estigma do título de bastardo do seu pai, Ned, mas dentre todos os Stark é o que mais se assemelha a ele em justiça, honra e retidão. Jon também é o homem atribulado por escolhas ruins e atitudes louváveis em honra, mas que lhe tiraram a paz pela moral, como condenar a morte um traidor da patrulha, que na verdade era uma criança. 
Daenerys Targaryen é a conquistadora que após passar por momentos de crucial sofrimento, sendo traída pelo próprio irmão, vendida e estuprada por um selvagem, consegue exércitos e poder por conta própria e confiando apenas em si mesma. É a mesma mulher que crucifica todos os lordes, maioria senhores de escravos de Mereen, sem se dar conta que também estavam, entre eles, pessoas inocentes que não participavam do sistema escravocrata. É a mesma mulher que chora por não ter conseguido filhos, mas queima pai e filho por traição. 

Nem os heróis estão à salvo.

Game of Thrones, por mais que queira, em uma análise intermediária da narrativa, retratar um jogo político inspirado na formação da Inglaterra com toques de realismo mágico, faz muito mais: Game of Thrones nos lê e nos revela como esse ser contraditório, contrastante... Humano demais para vilão, humano demais para herói.


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